sábado, 26 de janeiro de 2008

Para Sempre

Mais uma do Drummond...

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.


Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Uma história...

Uma história é capaz de iluminar nossa relação com os outros,
de fortalecer nossa compaixão, de transformar o olhar com que contemplamos nossos semelhantes,
confirmando a crença de que
"estamos todos juntos na tarefa de viver..."
Uma história leva-nos a descobrir uma verdade nova, a dar-nos uma nova perspectiva,
a ver o mundo de maneira renovada.
Ruth Stotter

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Quem é você?


-Alguém me perguntou.

E na hora de responder eu engasguei.

É claro que sei meu nome...

Mas será que dizer o nome basta?

Fiquei pensando.

Se disser meu nome, sobrenome e apelido,

a cidade, a rua, a casa em que eu moro,

as pessoa podem até achar que me conhecem.

Só que não vão saber das coisas que eu penso,

das comidas de que eu gosto,

dos sonhos que eu tenho,

dos segredos que eu não conto.

Não vão saber o principal...

Meu nome, meu apelido, meu endereço não dizem,

de verdade, quem sou eu.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O mundo, aqui



Esta mulher de saias largas e sorriso contido, que me encara na foto amarelada, é minha bisavó. À sua volta um jardim, um quintal, uma rua tão comprida que nem tem fim. O mundo antigamente era desse jeito: largo, misterioso, cheio de terrenos e quintais e várzeas e céus -como nas velhas fotografias desse álbum.

Conheci minha bisavó. Não a jovem morena que me sorri no retrato, mas a mulher de cabelos brancos e corpo frágil, que me contava histórias ao anoitecer. Parece que ainda ouço a sua voz...

"-Ah, era tudo muito longe. Qualquer viagenzinha demorava dias, semanas. Até ir ao centro da cidade demorava um tempão!"

"-Cinema? Quase nunca. O máximo que dava pra fazer era ir ao vizinho ouvir rádio. Tocava música, dava notícias. Lembro do tempo da guerra..."

"-Mandavam cobrir as janelas, apagar as luzes durante o blecaute. Diziam que podia ter bombardeio. Eu não tinha medo: a guerra acontecia lá nas europas, não ia chegar aqui. França, Alemanha...pra mim aqueles lugares não existiam de verdade, eram mais longe que o purgatório!"

É. O mundo da minha bisavó era imenso, interminável, inesgotável. A noticia de uma bomba atômica estourando no Japão só chegaria a ela muito tempo depois. Os longos espaços amorteciam as novidades e adiavam os espantos.

E hoje... eu fecho o álbum de fotografias amareladas e vejo à minha frente as imagens de um terremoto no Japão. A queda de um avião no Canadá. Fome na África e exércitos na Ásia. Uma competição esportiva na Austrália. Naves saindo do Sistema Solar... tudo aqui, e agora.

Parece brincadeira, mas eu conheço melhor o rosto do presidente americano do que o do padeiro ali na esquina! Estranhos tempos estes, em que o mundo cabe inteiro, em tempo real, naquela caixa iluminada parada no meio da minha sala! Em que uma teia eletrônica leva qualquer um a qualquer lugar.

Ainda como espanto de minha bisavó por dentro, piso porta afora e entro no mundo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Tropeções de Inteligência

Há a história dos dois ursos que caíram numa armadilha e foram levados para um circo. Um deles, com certeza mais inteligente que o outro, aprendeu logo a se equilibrar na bola e a andar no monociclo, o seu retrato começou a aparecer em cartazes e todo o mundo batia palmas: "Como é inteligente". O outro, burro, ficava amuado num canto, e por mais que o treinador fizesse promessas e ameaças, não dava sinais de entender. Chamaram o psicologo do circo e o diagnostico veio rápido: "É inútil insistir. O Q.I é muito baixo..."
Ficou abandonado num canto, sem retratos e sem aplausos, urso burro, sem serventia... O tempo passou. Veio a crise economica e o circo foi à falência. Concluíram que a coisa mais caridosa que se poderia fazer aos animais era devolvê-los às florestas de onde haviam sido tirados. E, assim, os dois ursos fizeram a longa viagem de volta.
Estranho que em meio à viagem o urso tido por burro parece ter acordado da letargia, como se ele estivesse reconhecendo lugares velhos, odores familiares, enquanto seu amigo de Q.I alto brincava tristemente com a bola, último presente. Finalmente, chegaram e foram soltos. O urso burro sorriu, com aquele sorriso que os ursos entendem, deu um urro de prazer e abraçou aquele mundo lindo de que nunca esquecera. O urso inteligente subiu na sua bola e começou o número que sabia tão bem. Era só o que sabia fazer. Foi então que ele entendeu, em meio às memórias de gritos de crianças, cheiro de pipoca, música de banda, saltos de trapezistas e peixes mortos servidos na boca, que há uma inteligência que é boa para circo. O problema é que ela não presta para viver.
Rubem Alves

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Presas no Elevador


O elevador parou com um baque. As luzes se apagaram e, embora não ficasse totalmente escuro, Ivana sentiu um frio na barriga que significava pavor. Olhou para a senhora a seu lado, também surpresa pela parada, e tentou iniciar uma conversa:

-Parece que acabou a força!

A mulher num tom preocupado, disse:

-Ich spreche kein Portugiesisch...

Ivana lembrou-se de que naquele edifício não havia apenas a firma em que seu pai trabalhava, mas também alguns consulados de paises estrangeiros. E, naquela emergência, ela esbarra justamenteem uma mulher que não falava português! Como poderia comunicar-se?

E como sairiam daquele elevador parado? Tentou apertar o botão de "emergência" no painel, mas nada mudou. O elevador continuava escuro e parado, provavelmente entre cois andares. A garota olhou para sua companheira e fez com os braços o gesto universal de "o que faremos?". A mulher examinava a porta fechada.

-Komm!- disse ela, como se Ivana pudesse entendê-la-Ich glaube, es gibt einen Ausgang hier.

E pôs-se a puxar a porta para o lado, por uma pequena fresta. Ivana não precisou de dicionário para saber que a senhora pedia sua ajuda. Colocou as mãos no vão, que agora se tornava maior, e ajudou a outra a puxar a porta. Em poucos minutos haviam aberto uma passagem, e podiam ver uma abertura para o andar superior. Ivana calculou a altura pra pular.

-Ich helfe Ihnen. - disse a senhora, fazendo um degrau com as mãos e ajudando Ivana a alcançar a abertura.

Uma vez lá fora, a garota estendeu os braços e içou a mulher, que, com inesperada agilidade, esgueirou-se para fora do elevador. Paradas no corredor escuro, vendo o cubículo do qual havia escapado, elas se abraçaram, expressando-se na linguagem universal das interjeições:

-Uf!...

domingo, 6 de janeiro de 2008

A garotinha que ousou desejar


Quando Amy Hagadorn dobrou a esquina no final do corredor de sua sala de aula, colidiu com um garoto alto da quinta série correndo na direção oposta.

-Olhe por onde anda, coisinha -gritou o garoto enquanto se desviava da menina da terceira série. Então, com um sorriso afetado, o garoto segurou sua perna direita e imitou a maneira que Amy mancava quando estava andando. Amy fechou os olhos por um instante. "Ignore-o", disse para si mesma enquanto se dirigia para a sala de aula. Mas, no final do dia, Amy ainda estava pensando sobre a zombaria do garoto. E ele não era o único. Desde que Amy entrara para o terceiro ano, alguém zombava dela todo santo dia, a respeito de sua forma de falar ou de seu andar manco. Ás vezes, mesmo em uma sala cheia de outros alunos, as zombarias a faziam sentir-se sozinha.

À mesa de jantar naquela noite, Amy ficou calada. Sabendo que as coisas não iam bem na escola, Patti Hagadorn ficou feliz por ter boas notícias para partilhar com sua filha.

-Há um concurso de desejos de Natal na estação de rádio local - anunciou. -Escreva uma carta para Papai Noel e você pode ganhar um prêmio. Acho que alguém de cabelos louros e cacheados nesta mesa deveria entrar.

Amy riu e um papel e uma caneta surgiram.

-Querido Papai Noel - ela começou.

Enquanto Amy caprichava na caligrafia, o resto da familia tentava descobrir o que ela poderia pedir para Papai Noel. Tanto a irmã de Amy, Jamie, quanto sua mãe pensaram que uma Barbie de um metro de altura estaria no topo da lista de desejos de Amy. O pai de Amy pensou em um livro com ilustrações. Mas Amy não revelou seu desejo secreto de Natal.

Na estação de rádio WTL, em Fort Wayne, Indiana, as carta para o Concurso de Desejo de Natal jorravam. Os funcionários se divertiam com todos os diferentes presentes que os meninos e meninas de toda a cidade queriam para o Natal. Quando a carta de Amy chegou a estação de rádio, o diretos Lee Tobin a leu com atenção.

"Querido Papai Noel.

Meu nome é Amy. Tenho nove anos de idade. Tenho um problema na escola. Será que você pode me ajudar Papai Noel? Os garotos riem de mim por causa da maneira que eu ando, corro e falo. Tenho paralisia cerebral. Só queria um dia em que ninguém risse ou zombasse de mim.

Com amor, Amy."

O coração de Lee ficou apertado quando ele leu a carta. Ele sabia que paralisia cerebral era uma desordem muscular que podia deixar os colegas de Amy confusos. Ele pensou que seria bom para as pessoas de Fort Wayne ouvirem a respeito da menininha especial e seu pedido incomum. O Sr. Tolbin ligou para o jornal local.

No dia seguinte, uma foto de Amy e sua carta para Papai Noel estavam na primeira página do The News Sentinel. A história se espalhou rapidamente. Por todo o país, jornais, rádio e televisão relatavam a história da garotinha em Fort Wayne, Indiana, que pedira um presente de Natal tão simples e, ainda assim, notável- apenas um dia sem zombarias.

De repente, o carteiro passou a frequentar a casa do Hagadorns. Envelopes de todos os tamanhos endereçados a Amy chegavam diariamente, enviados por crianças e adultos do país inteiro, recheados de desejos de boas festas e palavras de encorajamento. Durante a época atribulada do Natal, mais de duas mil pessoas do mundo todo enviaram a Amy cartas de amizade e apoio. Alguns dos remetentes tinham deficiências, mas cada um enviava uma mensagem especial para Amy. Através dos cartões e cartas vindas de estranhos, Amy teve um vislumbre de um mundo cheio de pessoas que realmente se importavam com as outras. Ela percebeu que nenhuma forma ou quantidade de zombarias poderia fazê-la se sentir solitária novamente.

Muitas pessoas agradeceram a Amy por ser corajosa o suficiente para se abrir. Outras a encorajavam a ignorar as provocações e a andar de cabeça erguida. Lynn, uma menina da sexta série, do Texas, enviou esta mensagem:

"Gostaria de ser sua amiga e se, você quiser me visitar, poderiamos nos divertir. Ninguém irá zombar de nós porque, se o fizerem, não iremos nem ouvi-los"

Amy conseguiu o seu desejo de um dia especial sem zombarias na Escola Primária South Wayne. Ademais, todos na escola receberam um bônus extra. Professores e alunos discutiram sobre o que as zombarias podem fazer os outros se sentirem. Naquele ano, o prefeito de Fort Wayne proclamou oficialmente o dia 21 de dezembro como o Dia de Amy Jo Hagadorn em toda a cidade. O prefeito explicou que, ao ousar fazer um pedido tão simples como aquele, Amy ensinou uma lição universal.

-Todos- disse o prefeito - querem e merecem ser tratados com respeito, dignidade e carinho.

Alan D. Schultz

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O pequeno manual do Grande Manuel


Anunciava-se como "O Grande Manuel". Era português, alto, parecido com o John Carradine. Vinha pelo meio da tarde, trancava-se no salão de festas com suas malas. O forte dele era um número de bandeiras, bandeiras de todos os clubes e nações, bandeiras de entidades e coisas inexistentes que iam saindo de sua formidável piteira.

Como, por que e onde o Grande Manuel começou a fazer mágicas são coisas da vida, de maneira geral, e dos mãgicos em especial. Veio de Portugal para plantar batatas não sei onde. À cultura das batatas preferiu a cultura das ilusões: plantava um relógio no vaso, do vaso nascia um ovo, do ovo nascia a pomba. Plantar batatas talvez fosse menos trabalhoso mas as mágicas davam-lhe glória. Não era um Manuel qualquer. Era o Grande Manuel.

Mas até os grandes Manuéis vivem de coisas pequenas. A dele chamava-se "O Pequeno Manual dos Mágicos". Uma tarde, ele esqueceu o manual numa cadeira, nós pegamos o livrinho, descobrimos os truques todos. À noite, quando o Grande Manuel dizia: -"Olhem aqui, este guarda-chuva!", nós berrávamos: -"Não é guarda-chuva, é uma espingarda!"

Nunca mais o Grande Manuel foi contratado para deslumbrar nossos dias de festa. Deveria andar por aí, vendendo suas mágicas pelos cafundós do mundo. Ontem, ao abrir a porta lá de casa, vi o homem. O mesmo jeito de John Carradine, mais velho, o mesmo sotaque. Só não era o Grande Manuel. Era o Manuel dos Santos, técnico da loja que me vendeu um aspirador de pó. Não me reconheceu, eu era um menino no meio de duzentos meninos.

Examinou o aspirador, abriu a maleta das ferramentas. Vi um livro velho, amarelado, não, não era o pequeno manual e sim a genda dos clientes que precisava visitar. Mesmo assim, temi que ele repetisse o Grande Manuel e transformasse meu aspirador em liqudificador. Temi em vão. Numa época em que somos todos um pouco mágicos, ele pendurou suas chuteiras. Não me cobrou nada, a peça estava na garantia. E nunca entenderá por que lhe dei tão generosa gorgeta pela troca de um parafuso. A ele, que trocava flores em pássaros, perseguindo a gorgeta do aplauso e da glória que brotava de seus dedos encantados.


Carlos Heitor Cony