sábado, 29 de março de 2008

Ama

(por Georgeton Correia)

Conta uma antiga lenda oriental que os humanos eram seres perfeitos, com duas faces, uma apontando para o norte e a outra para o sul. Invejoso de tamanha perfeição, um deus teria lançado um raio dividindo o homem ao meio, cada novo indivíduo com um único rosto, num corpo distinto. Desde então, o homem passa a sua vida inteira à procura de sua cara-metade, ou do ser que irá completar-lhe tornando-o perfeito mais uma vez. O amor seria, assim, a energia magnética que faria os dois pólos atraírem-se mutuamente, rumo ao equilíbrio. Esse seria um final feliz, não fôssemos nós excessivamente racionais e descrentes na existência de coisas que não se podem comprovar, explicar; e isso inclui as lendas.

O medo de amar é a maior causa das angústias do homem. Somos todos essencialmente covardes por não aceitarmos essa necessidade básica de nossas vidas. E assim, sufocamos esse sentimento, matando junto com ele uma parte preciosa de nós mesmos. Evitamos, inconscientemente, nos apaixonar. Procuramos incansavelmente um ser perfeito porque sabemos, lá no fundo, que ele não existe. “Este não serve: é baixo demais”; “aquele outro é negro demais”; “aquele é branco, não me agrada”. E assim, fugimos, nos esquivamos... Tememos aquilo que não conhecemos. E como o amor é o mais inconceituável dos sentimentos, evitamo-lo.

Oxalá alguém nos revelasse a real função de tão controverso sentimento. Esse arrebatador de almas que tira o sono ao escritor e faz ferver o sangue ao leitor. Esse delicioso narcótico sem contra-indicações, capaz de fazer agir passionalmente até o maior dos céticos. Esse bichinho invisível que nos corrói a alma em noites insones, enquanto não encontramos uma cara-metade que apazigúe a sua fúria. Essa caixa de Pandora às avessas, que uma vez aberta inunda nosso mundo de cores, perfumes e sensações inebriantes, obliterando – ainda que em caráter temporário – as mazelas que nos cercam cotidianamente.

Ah, o amor... Somente um romântico inveterado conhece os benefícios do maior dos sentimentos humanos. O amor é o mais eficiente entre os bálsamos: ele é capaz de curar até mesmo as mais profundas feridas. E o que te importa se não sabes conceituá-lo? A ti te basta senti-lo. E se ainda não encontraste a tua cara-metade da qual fala aquela tal lenda, segue o exemplo de Betânia e ama a quem quer que seja: homem, mulher ou animal. Ouve os conselhos de Florbela e ama só por amar. Abre a tua boca e grita desesperadamente a teus pais, vizinhos, amigos ou até mesmo ao teu trabalho: “Amo-te!”. Experimenta esse exercício ao menos uma vez ao dia e não te importes se te chamarem insano por conta disso. Talvez teus problemas não se dissipem; mas será – ao menos – mais doce enfrentá-los, se amares.

sexta-feira, 28 de março de 2008

segunda-feira, 24 de março de 2008

A primeira só

sss
Era linda, era filha, era única. Filha de rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar?
Sozinha no palácio chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de brinquedos. Queria uma amiga para gostar.
De noite o rei ouviu os soluços da filha. De que adianta a coroa se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com a tristeza. Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o espelho ao pé da cama da filha que dormia.
Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina linda e única olhava surpresa para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom-dia. A outra deu bom-dia sorrindo.
-Engraçado-pensou uma-, a outra é canhota.
E riram as duas.
Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais.
A brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.
O rei, encantado com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa cesta. Bichos, bonecas, casinhas, e uma bola de ouro. A bola no fundo da cesta. Porém tão brilhante, que foi o primeiro brinquedo que escolheram.
Rolaram com ela no tapete, lançaram na cama, atiraram para o alto. Mas quando a princesa resolveu jogá-la nas mãos da amiga, a bola estilhaçou o jogo e amizade.
Uma Moldura vazia, cacos de espelho no chão.


Marina Colassanti, Uma idéia toda azul,
ed. Nórdica.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Verdade ou ilusão?


Às vezes fico pensando

se é verdade ou ilusão,

quando vejo aparecer

lenços e pombas sem fim

nas mãos vazias de um mágico,

e, quando firmo a visão,

nada resta em frente a mim...

É da manga que ele tira,

é tudo um truque,mentira...

Ou não?


Às vezes fico na dúvida

se é sonho ou realidade

quando nas ordens de um mágico

caem moedas no ar,

surgem chamas à vontade,

e, quando torno a olhar,

não há nada em sua mão!

É só mentira, ilusão...

Ou verdade?

segunda-feira, 17 de março de 2008

E não é que existem mesmo Príncipes Encantados?




Muito obrigado pelo texto Tom!




Por Georgeton Correia

Cresci ouvindo histórias sobre castas princesas enclausuradas em seus castelos, à espera de um príncipe que viesse a lhes resgatar da entediante rotina de sua corte. Histórias infantis, como a da Cinderela, a pobre menina criada por sua madrasta malvada e suas duas meias-irmãs – igualmente cruéis – que, com a ajuda de sua fada-madrinha, fisgou um belo príncipe deixando pra trás – estrategicamente, ninguém me convence do contrário! – um pé do seu sapatinho de cristal. Ou histórias como a da Branca de Neve, a mais bela de seu reino, que, vítima da inveja de sua madrasta – já repararam que todas essas princesas tinham madrastas? –, precisou pedir acolhida na casa dos sete anões, comeu – pobrezinha! – uma maçã envenenada e somente acordou do feitiço após o beijo do seu não menos encantado príncipe. Isso para não mencionar a Bela Adormecida: nem mesmo os cuidados de seus zelosos pais conseguiram impedi-la de furar seu dedo na agulha de uma roca, o que a fez cair em sono profundo, à espera – adivinham? – do beijo redentor do seu príncipe – sim, esse também encantado!

Ah, os príncipes encantados! Na verdade eu nunca acreditei muito neles. Sempre me pareceu muito exagerado o fato de as princesas daquelas histórias passarem sua vida inteira à mercê do surgimento de seus príncipes. Podem até ser belas histórias, as que nos contavam nossos pais, mas eu definitivamente acreditava que elas deviam ser encerradas nos livros de bordas douradas e ponto final, não fora deles. O grande problema é que, na vida real, as pessoas tendem a imitar os contos de fadas e por isso idealizamos para nós um par perfeito, uma cópia fiel dos mocinhos das histórias que ouvíamos quando crianças: um príncipe de indefectíveis madeixas aloiradas, montado em um puro sangue branco, provavelmente oriundo de seu haras real. Ora bolas! Quais as chances de encontrar uma figura como essas andando pela calçada do outro lado da janela do nosso quarto? Seria muito mais fácil – e o leitor há de concordar comigo – ganhar sozinho, por sete vezes consecutivas, a Mega Sena acumulada. Por isso nunca acreditei nos príncipes encantados. Ou, pelo menos, não acreditava neles até ontem. Alguns fatos ocorridos ultimamente em minha pacata vida, entretanto, fizeram-me rever o conceito que tinha sobre a controversa figura do Príncipe Encantado.

Permita-me, caro leitor, compartilhar contigo de minhas recentes descobertas:

Os príncipes encantados não são loiros!
Eu sei que essa revelação pode parecer chocante à primeira vista, já que todos os príncipes que eu via retratados nos meus livros de infância ostentavam grandes cabeleiras cor de ouro. Mas essa é a mais pura realidade, creia-me: seu príncipe encantado terá cabelos pretos como azeviche! É claro que algumas variações podem ocorrer, a depender, obviamente, da família de que se origina o seu príncipe: cabelos castanhos, mais longos, mais curtos, mais crespos, mais lisos, até mesmo cabelos ausentes... Entretanto, quanto mais preto for o cabelo do seu príncipe, mais encantado – ou eu deveria dizer "encantador"? – ele será.

Os príncipes encantados não montam cavalos brancos!
Ora, faça-me o favor! Depois de décadas passadas desde a invenção do Sr. Ford, você ainda acredita que seu príncipe viria montado em um cavalo? Não, mesmo! Há grandes chances de que o seu príncipe encantado venha até você de ônibus, de trem ou mesmo de táxi. E daí? Se você tiver sorte, talvez encontre o seu príncipe saindo do velho Uno 1.0 que divide com o seu irmão. Mas não apeando de um cavalo. Muito menos branco!

Os príncipes encantados não têm rostos perfeitos!
Esqueça os belos dentes cor de neve, resplandecentes, e a pele de veludo rosada com os quais se costumam apresentar os príncipes nos contos. Mesmo havendo superado a puberdade há muito, talvez o seu príncipe ainda tenha marcas de espinhas no rosto. Tenha em mente que cada uma das marcas que trazemos estampadas em nossos corpos é um registro da experiência que adquirimos em nossa vida. Seu príncipe terá um sorriso ligeiramente amarelado e o brilho do seu sorriso será proveniente dos "brackets" do seu aparelho ortodôntico. Eu, particularmente, penso ser este um charme à parte.

Os príncipes encantados não usam mantos, nem cetros!
Desapontado? Lamento. Esqueça aquelas pesadas vestimentas medievais – capa e boina de lado –, e aquelas meias brancas coladas, enormes, que subiam até os joelhos. Seu príncipe chegará até você usando jeans e camisa três quartos. E você ainda precisará retirar um pequeno fiapo da linha que desprende do terceiro botão da camisa dele. Sugiro a ponta de um cigarro aceso pra essa tarefa: rápido, prático e eficiente, como pedem os tempos modernos.

Os príncipes encantados não têm recursos financeiros ilimitados!
Ouro? Pedras preciosas? Jóias da câmara real de tesouros? Qual é! Você ainda tem cinco anos ou o quê? Seu príncipe acordará todos os dias, às seis da manhã para encarar uma jornada de trabalho de oito horas, de segunda a sexta-feira, para ganhar um salário no final do mês. E ainda terá que encarar as aulas noturnas em sua faculdade de Administração de Empresas. Aos vinte e poucos anos, ele ainda não saberá que carreira seguir. E talvez não saiba, ainda, aos trinta. Uma dica: ofereça-se para dividir as contas do restaurante e do cinema com ele. E quando a grana estiver curta pra ambos, ainda resta o romantismo de assistir ao pôr-do-sol abraçadinhos. Quer espetáculo melhor?

O fato é que mesmo estando longe da perfeição dos Príncipes Encantados dos contos de fadas, o seu príncipe ainda te fará sorrir somente com a sua presença. Seu coração irá disparar como o de um adolescente, no momento do primeiro beijo. A sua face se encherá de rubor apenas com o toque dele. Os suspiros? Esses se tornarão uma constante no seu dia-a-dia – acredite em mim. E você irá se pegar, no meio de uma tarde entediante em seu trabalho, fitando o vazio com aquele ar sonhador e um sorriso no canto da boca, dádivas somente concedidas aos apaixonados. Mas acima de tudo, mesmo quando não estiver ao seu lado, o seu príncipe fará com que você sinta que, assim como aquelas princesas sobre quem comentei no início, vocês dois podem ser "felizes para sempre".

Agora, se você, caro leitor, puder dar-me licença, preciso atender a uma carruagem que acabou de estacionar à minha porta

quinta-feira, 13 de março de 2008

Jeitos de Falar

Adoro passar o dia com meu avô e minha avó. De vez em quando faço isso, e sempre me divirto de montão.
Vovô é alto, magro, tá sempre olhando pra cima. Gosta de olhar as nuvens. Já me explicou vinte vezes a diferença entre cirros, cúmulos e nimbos. Outro dia me disse:
- A presença no firmamento de densos nimbos em baixa altitude prenuncia precipitações pluviométricas iminentes.
Fiquei na mesma. Só entendi quando Vovó me explicou:
- Vai chover.
Vovó é muito ativa: anda pra lá e pra cá o tempo todo. É ela quem sabe onde estão guardadas todas as coisas na casa, desde alfinetes até enormes baús da bisavó. É gorducha e, perto de Vovô, parece baixinha.
Vovô sabe tudo. Conhece todas as palavras do dicionário, todos os países do mundo - com nome científico e tudo. Adoro conversar com ele, mas não pesco nem metade, só dá pra entender o que ele diz se vovó estiver junto.
Vovó não fala muito; em compensação, faz cada doce de dar água na boca. E tricota os agasalhos mais quentinhos do mundo.
Ontem passei o dia na casa deles, e saímos os três pra fazer compras. Entramos na farmácia e Vovô disse pro balconista:
- Por obséquio, necessitamos adquirir cápsulas de ácido acetilsalicílico para sanar cefalalgias.
O garoto atrás do balcão ficou o lhando pro Vovô como se ele tivesse falado grego. Aí Vovô traduziu:
-Precisamos de aspirina para dor de cabeça.
É por essas e outras que eu adoro Vovô e Vovó.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O poder do perdão

Em 1974, voltando da escola para casa no último dia antes das férias de Natal, eu pensava animadamente sobre o feriado vindouro, como só os meninos de dez anos conseguem sonhar. A algumas portas de distância da minha casa em Coral Grables, Flórida, um homem se aproximou de mim e perguntou se eu poderia ajudá-lo com a decoração de uma festa que ele estava dando para meu pai. Achando que era um amigo de meu pai, concordei em ir com ele.
O que eu não sabia era que este homem tinha ressentimentos contra a minha família. Trabalhara como enfermeiro para um parente idoso, mas fora despedido por causa da bebida.
Após eu ter concordado em acompanhá-lo, ele dirigiu seu trailer até uma área isolada ao norte de Miami, onde parou no acostamento da estrada e me golpeou várias vezes no peito com um furador de gelo. Então dirigiu para oeste, até Flórida Everglades, levou-me até o meio dos arbustos, deu um tiro em minha cabeça e me deixou lá para morrer.
Felizmente a bala havia passado por trás de meus olhos e saído pela minha têmpora esquerda sem causar nenhum dano cerebral. Quando recobrei a consciência, seis dias depois, não tinha noção de que tinha sido atingido por um tiro. Fiquei sentado no acostamento e fui encontrado por um homem que parou para me ajudar.
Duas semanas depois descrevi a pessoa que me atacara para o desenhista da polícia e meu tio reconheceu o retrato resultante como o homem que me atacara. Meu agressor foi preso, junto com outros suspeitos. Entretanto, o trauma e o estresse haviam cobrado seu preço e não pude identificá-lo. Infelizmente a polícia não conseguiu recolher nenhuma prova física que o ligasse ao crime. Portanto, ele nunca foi acusado.
O ataque me deixou cego do olho esquerdo, mas não causou nenhum outro dano e, com amor e o apoio da minha família e amigos, voltei para a escola e dei continuidade a minha vida.
Durante os três anos seguintes, vivi com uma extrema ansiedade. A maioria das noites eu acordava assustado, imaginando que havia escutado alguém entrando pela porta dos fundos e acabava dormindo no pé da cama de meus pais.
Então, quando eu estava com treze anos, tudo isso mudou. Uma noite, durante um estudo da Bíblia com o grupo jovem da igreja, percebi que a providência e o amor de Deus, tendo miraculosamente me mantido vivo, eram a base para a segurança em minha vida. Em Suas mãos eu podia viver sem medo ou rancor. E então eu o fiz. Terminei os estudos, recebendo o diploma de Divindade. Casei com minha maravilhosa esposa, Leslie. Temos duas filhinhas maravilhosas, Amanda e Melodee.
Em setembro de 1996, o major Charles Scherer, do Departamento de Polícia de Coral Gables, que trabalhara na investigação original do meu caso, telefonou-me para me contar que o agressor, hoje com setenta sete anos de idade, finalmente confessara. Cego por causa do glaucoma, com a saúde abalada, sem família ou amigos, ele estava em um asilo no norte de Miami Beach. Fui visitá-lo.
A primeira vez em que fui visitá-lo ele se desculpou pelo que havia feito a mim e eu lhe disse que o havia perdoado. Visitei-o muitas vezes depois disso, apresentando-o à minha esposa e filhas, oferecendo-lhe esperança e uma certa sensação de família nos dias anteriores à sua morte. Ele sempre ficava feliz quando eu aparecia. Acredito que nossa amizade tenha diminuído sua solidão e era um grande alívio para ele, após vinte e dois anos de arrependimento.
Sei que o mundo pode me ver como a vítima de uma horrível tragédia, mas eu me considero a "vítima" de muitos milagres. O fato de eu estar vivo e não ter nenhuma deficiência mental desafia as probabilidades. Tenho uma esposa amorosa e uma família linda. Recebi tantas dádivas quanto qualquer outra pessoa - e amplas oportunidades. Fui abençoado de várias maneiras.
E enquanto muitas pessoas não conseguem entender como pude perdoá-lo, do meu ponto de vista eu não poderia deixar de fazê-lo. Se eu tivesse escolhido odiá-lo todos esses anos, ou passar a vida procurando vingança, então eu não seria o homem que sou hoje - o homem que minha mulher e filhas amam.

Chris Carrier- Extraído do livro Histórias para aquecer o coração, da editora Sextante.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Pequeno Grande Planeta...


Imagino a Terra ao longe, lá no espaço.
O planeta dá sua eterna volta
em torno de si mesmo,
em torno do Sol.
Minha imaginação vê os mares azuis,
as nuvens brancas,
as manchas indistintas que devem ser
os continentes, florestas, cordilheiras,
Desertos secos e pólos gelados, rios tão
calmos e vulcões furiosos
A Terra tão longe, lá no espaço, gira:
pequeno planeta na imensidão do espaço
cocô de mosca perdido no universo-
e, mesmo assim, enorme e tão diverso!
Seco, molhado, frio e incandescente,
cada vez um planeta diferente.
A Terra,
grande, boa e velha Terra.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Porque hoje é sábado...

Eu sei que hoje é quarta-feira e que o título da crônica são versos do imortal Vinicius de Moraes.
E os poetas são aqueles que enxergam primeiro, são mais artistas que um cronista semanal, por exemplo.
Agora, com a idade entrando na carne e na dor da gente, vamos percebendo o significado de uns versos que ficaram na nossa memória de adolescente. Entendemos melhor, digamos assim.
O sábado, por exemplo. Nunca dei tanto valor para o sábado, como agora. Em primeiro lugar porque tem o domingo depois. Esse sim, como diz o Jornal da Tarde, é o dia do bode. Ou seja, no sábado você tem direito a tudo e ainda conta com o domingo para sarar, recuperar, tirar as culpas. Não fosse domingo o dia da família, talvez até desse para enfrentar. Mas domingo é um horror. Já começa com missa logo de manhã. Pode? Mesmo quando a gente viaja. Domingo é o dia da volta, das filas. E o pior, do domingo, é que é a véspera de terrível segunda-feira.
Segunda-feira, como todo mundo sabe, é o dia de começar tudo. Desde o trabalho e o regime, aquele desejo de parar de fumar, beber menos. Não pode haver dia pior porque, na verdade, a única coisa que todo mundo faz mesmo na segunda-feira, é trabalhar. Planos e projetos ficam sempre para o mês que vem. Principalmente a dieta e o cigarro. E quer coisa pior da segunda-feira que o colega (ou a colega) de trabalho do lado contar como foi o fim de semana dele? Em detalhes?
Mas voltemos ao sábado. No sábado tudo é permitido. Tudo. Até brochar, num sábado você pode. Mas brochar, por exemplo, numa quarta-feira é imperdoável, literalmente. Sábado, não. Tem outras horas, mais tarde, quem sabe, mais um uisquinho. No sábado as nossas mulheres entendem.
No sábado tem o churrasco em casa e a feijoada no restaurante. Em ambos os casos não tem hora nem para começar e nem para acabar. Não é como a feijoada de quarta-feira onde o cara se enche todo e volta, coitado, para a repartição, arrotando e flatulando.
No sábado você pode desejar a mulher do próximo, mesmo que ele esteja próximo. Pode acordar a hora que quiser. Pode deitar a hora que quiser. Pode encher a cara e esvaziar a cabeça.
No sábado, de noite, você pode jogar um poquerzinho com a turma que a sua mulher não vai reclamar. Mas experimente marcar um pôquer para a quinta-feira. Dá briga. Tudo pode, no sábado.
Não é muito mais gostoso ir ao futebol no sábado? Domingo é dia de ficar em casa vendo pela televisão, as reprises, aqueles gols todos.
Sábado é dia de cinema e teatro. Tem sábado que dá até para enfrentar uma pizza. Mas pizza noutro dia é cafona. Pizza na quinta, por exemplo. Não tem sentido. No sábado, não. É programa.
A sexta-feira pode ser considerado um péssimo dia. Último dia de trabalho, você cansado. Mas a sexta-feira tem uma vantagem. No outro dia é sábado. Na verdade, o verdadeiro sábado começa quando você sai do seu trabalho. Quando escurece na sexta-feira, já estamos no sábado. O sábado vai das seis da tarde da sexta, até a madrugada de domingo. Sim, o sábado é o único dia da semana que tem 36 horas. Corridas e lentas ao mesmo tempo.
Quer dia melhor para lavar o carro, visitar os filhos? Quer trânsito melhor que o de sãbado? O carro desliza pela cidade como se estivéssemos em outro planeta.
Sábado é o único dia da semana que dá para ver um filme na televisão, de tarde, sem ficar com culpa. Numa boa.
Sábado tem sol mais bonito, o dente de siso não dói, a úlcera some (volta sempre na segunda de tarde), o uísque desce mais macio, a gente demora para ficar de porre. A gente tem o dia inteiro para ler o jornal, fazer palavras cruzadas.
Eu acho que quando Deus criou esse nosso mundo, deve ter pensado: vou fazer um dia só para os homens. O sábado. As mulheres que me desculpem, mas sábado é um dia masculino, com o que (eu acho) o meu grande poetinha ia ter que concordar.
Tudo isso só porque hoje é sábado e eu estou escrevendo essa crônica para você.


Mário Prata
Crônica escrita para o Estado de São Paulo em 1998