quinta-feira, 26 de junho de 2008

O porão debaixo da escada


Era um lindo dia de domingo, ensolarado até não poder mais. Carol tinha dado uma pequena fugida daquele almoço em família e estava ali, debaixo da escada. Podia ouvir ao longe as gargalhadas dos seus pais, tios, primos... Mas antes de se juntar àquela algazarra, resolveu ficar um pouco ali.
A partir de amanhã, tudo iria mudar. O início da faculdade, a mudança para outra cidade, a casa nova e o início de sua independência. Na verdade, Carol não tinha muita certeza se estava muito pronta para isso. Com certeza morar sozinha seria um passo muito grande! E se não estivesse preparada? Mil coisas passavam em sua cabeça e nada melhor do que o velho porão debaixo da escada, para ajudar a refletir. Com certeza, aquele lugar havia sido o palco principal de suas travessuras infantis. Era lá onde brincava com suas bonecas, onde escrevia em seu diário, ou onde suspirava por um garoto bonito.
Momentos marcantes da sua vida, que infelizmente não voltarão mais. Carol sentia naquela hora, as mesmas borboletas na barriga que sentiu ao se ver em seu baile de debutantes, ao entrar em um novo colégio onde não conhecia ninguém, ao ter o seu primeiro beijo... Era um misto de ansiedade e apreensão. Não que ela não gostasse de novidades, pelo contrário. Mas sabia que ao pisar naquela nova cidade, sua vida sofreria uma reviravolta e Carol não podia esconder o seu temor.
Enquanto olhava para aquele lugar sujo e acolhedor, ouviu muitas risadas. Com certeza papai começou a contar mais uma de suas piadas infames! - pensou. Aquela era a sua deixa. Ia voltar à festa e depois iria ao encontro do seu futuro. Mas sem se esquecer é claro, do velho porão debaixo da escada.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Com pressa

Passei correndo pela sala de jantar usando meu melhor vestido, concentrada em me preparar para um encontro de negócios noturno. Gillian, minha filha de quatro anos, estava dançando ao som de sua música favorita, Cool, do filme Amor, sublime amor.
Eu estava com pressa à beira de chegar atrasada. No entanto uma vozinha dentro de mim disse: "Pare".
Então parei. Olhei para ela. Aproximei-me, peguei sua mão e a rodopiei. Minha filha de sete anos, Caitlin, entrou na nossa órbita e eu também a peguei. Nós três dançamos alucinadamente pela sala de jantar até chegarmos à sala de estar. Ríamos. Rodopiávamos. Será que os vizinhos podiam ver a loucura pelas janelas? Não tinha importância. A música chegou ao fim com um floreio dramático e nossa dança terminou com ela. Dei um tapinha em seus traseiros e mandei que fossem tomar banho.
Ela subiram as escadas, sem fôlego, seus risinhos ricocheteando pelas paredes. Voltei aos meus afazeres. Estava dobrada para a frente, enfiando papéis em uma pasta, quando ouvi a mais nova falar para a irmã.
-Caitlin, você não acha que a mamãe e a mais melhor de todas?
Congelei. Eu quase correra pela vida, perdendo aquele momento. Meu pensamento foi para os prêmios e os diplomas que cobriam as paredes do meu escritório: Nenhum prêmio, nenhuma realização que eu jamais alcançara, poderia se comparar a isso: "Você não acha que a mamãe é a mais melhor?"
Minha filha disse isso quando tinha quatro anos. Não espero que ela o diga com quatorze. Mas, aos quarenta, se ela se inclinar por cima daquela caixa de pinho para dizer adeus para o recipiente descartado da minha alma, quero que o diga:
"Mamãe nao é a mais melhor?"
Não combina com o meu currículo. Mas quero isso gravado na minha lápide.

Gina Barret Schlesinger
Extraído do livro "Histórias para aquecer o coração", da editora Sextante.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Procura-se um amor

Procuro um amor. Mas não um amor qualquer... Estou à procura de algo que nunca senti, nunca experimentei. Quero entregar a minha vida para vivê-lo, quero que se torne a motivação dos meus sorrisos, o iniciar de todas as minhas alegrias. Desejo um sentimento tão forte, que consiga apagar todas as dores que já vivi, que me ajude a trancar em um calabouço profundo, todas as lágrimas que já chorei.
Na minha incansável busca, irei procurar em todos os lugares que irei passar. Sei que posso encontrá-lo em um supermercado, numa lavanderia ou em uma esquina qualquer. Estarei sempre prestando atenção ao meu coração que como um imã, será instantaneamente atraído pela minha outra metade.
Quando encontrá-lo, saberei desfrutar todos os momentos, as piadas sem graça, as idas ao cinema, as tardes na frente da televisão, rindo sem parar dos cretinos programas vespertinos... Irei compartilhar todas as suas dores, chorarei todas as suas tristezas, mas também me alegrarei com suas alegrias e comemorarei as suas conquistas. Contarei os meus segredos mais íntimos, sei que não terá medo e sei também que me ajudará a carregar pesos que nunca imaginei compartilhar.
Enquanto o meu amor não chega, estarei me preparando. E incansavelmente irei procurar. Mais cedo ou mais tarde, eu encontrarei. Encontrarei minha razão para viver.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O ato de estudar

por Paulo Freire

Tinha chovido toda a noite. Havia enormes poças de água nas partes mais baixas do terreno. Em certos lugares a terra, de tão molhada, tinha virado lama. Às vezes, mais do que escorregar, os pés se atolavam na lama até acima dos tornozelos. Era difícil andar. Pedro e Antônio estavam transportando numa camioneta cestos cheios de cacau para o sítio onde deveriam secar. Em certa altura, perceberam que a camioneta não atravessaria o atoleiro que tinham pela frente. Pararam. Desceram da camioneta. Olharam o atoleiro, que era um problema para eles. Atravessaram os dois metros de lama, defendidos por suas botas de cano longo. Sentiram a espessura do lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois, com a ajuda de algumas pedras e galhos secos de árvores, deram ao terreno a consistência mínima para que as rodas da camioneta passassem sem se atolar. Pedro e Antônio estudaram. Procuraram compreender o problema que tinham a resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa. Não se estuda só na escola. Pedro e Antônio estudaram enquanto trabalhavam.