quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O pequeno manual do Grande Manuel


Anunciava-se como "O Grande Manuel". Era português, alto, parecido com o John Carradine. Vinha pelo meio da tarde, trancava-se no salão de festas com suas malas. O forte dele era um número de bandeiras, bandeiras de todos os clubes e nações, bandeiras de entidades e coisas inexistentes que iam saindo de sua formidável piteira.

Como, por que e onde o Grande Manuel começou a fazer mágicas são coisas da vida, de maneira geral, e dos mãgicos em especial. Veio de Portugal para plantar batatas não sei onde. À cultura das batatas preferiu a cultura das ilusões: plantava um relógio no vaso, do vaso nascia um ovo, do ovo nascia a pomba. Plantar batatas talvez fosse menos trabalhoso mas as mágicas davam-lhe glória. Não era um Manuel qualquer. Era o Grande Manuel.

Mas até os grandes Manuéis vivem de coisas pequenas. A dele chamava-se "O Pequeno Manual dos Mágicos". Uma tarde, ele esqueceu o manual numa cadeira, nós pegamos o livrinho, descobrimos os truques todos. À noite, quando o Grande Manuel dizia: -"Olhem aqui, este guarda-chuva!", nós berrávamos: -"Não é guarda-chuva, é uma espingarda!"

Nunca mais o Grande Manuel foi contratado para deslumbrar nossos dias de festa. Deveria andar por aí, vendendo suas mágicas pelos cafundós do mundo. Ontem, ao abrir a porta lá de casa, vi o homem. O mesmo jeito de John Carradine, mais velho, o mesmo sotaque. Só não era o Grande Manuel. Era o Manuel dos Santos, técnico da loja que me vendeu um aspirador de pó. Não me reconheceu, eu era um menino no meio de duzentos meninos.

Examinou o aspirador, abriu a maleta das ferramentas. Vi um livro velho, amarelado, não, não era o pequeno manual e sim a genda dos clientes que precisava visitar. Mesmo assim, temi que ele repetisse o Grande Manuel e transformasse meu aspirador em liqudificador. Temi em vão. Numa época em que somos todos um pouco mágicos, ele pendurou suas chuteiras. Não me cobrou nada, a peça estava na garantia. E nunca entenderá por que lhe dei tão generosa gorgeta pela troca de um parafuso. A ele, que trocava flores em pássaros, perseguindo a gorgeta do aplauso e da glória que brotava de seus dedos encantados.


Carlos Heitor Cony


4 comentários:

Ricardo Jung disse...

este texto reflete mesmo a importância de uma pequena dose de inocência num mundo onde só se sabe destruir

pobre Mané


http://artepoiesis.blogspot.com/

Denise Machado disse...

Hoje li um blog de uma garota de dezessete anos afirmando categoricamente que será uma jornalista de sucesso. E faz bem, quero no futuro encontra-la nos jornais e não na minha porta vendendo avon, por ter esquecido um livro...
Vc é reflexivo. Gostei.

Fashionista Butterfly disse...

Já li essa história, se não me engano em alguma aula de leitura, não lembro.
Tudo que envolve palhaços e mágicos me encanta, principalmente quando são histórias assim que disfarçadamente escondem uma melancolia e um tanto de solidão.
Beijo.

Corto Blog Maltese disse...

Eu tb li essa história num livro do colégio. Acho ela muito triste.