quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ninguém em casa



Texto baseado na música Nobody's Home da Avril Lavigne





Seu grito cortou o frio gélido da noite, enquanto jogava para cima o papelão sujo e fétido que usava como um cobertor, cobrindo o seu corpo sofrido naquela já tão conhecida calçada. Mas pesadelos para ela não eram nada comparados à sua realidade. Quando se acalmou, riu de si mesma. Que tolice gritar! Ela estava completamente sozinha. Para ser sincera há muito tempo ela se vê completamente sozinha.
Ah, como invejava as pessoas que via nas ruas, com uma família saudável, feliz, que as amava... Ela nunca viveu assim. Seu pai abandonou sua família quando era muita criança, a partir daí sua mãe se mergulhou no álcool, perdeu toda a vontade de viver, e passou a ver em sua filha, o espelho de sua relação frustrada, descontando sempre na garota toda a sua amargura. Quem sabe assim não conseguisse expiar os seus pecados? Era assim que sua mãe a via, como um cordeiro que com o seu sofrimento aliviaria toda a sua culpa. Era isso que a maldita bebida lhe mandava fazer, como um demônio que a usava como uma marionete, a fim de se divertir com a sua desgraça.
A menina não pôde mais agüentar todas aquelas agressões físicas e morais. Em uma noite, reuniu toda a coragem que possuía, arrumou suas tão poucas roupas e foi embora. Foi para nunca mais voltar, para nunca mais ser humilhada novamente. As lágrimas escorriam sem parar, mas era necessário. Ela tinha que ir embora.
Desde aquele dia passou a chamar a calçada daquela movimentada avenida de lar, passou a sobreviver somente. O período de adaptação foi muito difícil, mas seus instintos de sobrevivência foram cruciais, tornando-a mais uma daquelas pessoas que vivem corajosamente sem um teto. Ah, como ela queria voltar par casa, para o seu verdadeiro lar... Mas não há ninguém em casa, não existe casa.
Depois de se recuperar do pesadelo, ela voltou a se cobrir e fechou seus olhos. Tinha que dormir mais um pouco, mais tarde o sol ia surgir e o seu "lar" estaria lotado de pessoas andando para todos os lados. E ela teria que voltar a sua rotina, teria que passar o dia garantindo mais um dia de vida. Afinal, mesmo se sentindo vazia por dentro, mesmo sua vida não tendo sentido, ela tinha que sobreviver.


domingo, 25 de maio de 2008

Compras

A entrada do Shopping Center parecia a boca de uma baleia luminosa, pronta para engolir a família de Marcelo. Tinham ido todos juntos fazer compras, embora o pai suspirasse de vez em quando durante o caminho, como que dizendo "Isso vai sair caro..."
Marcelo, Duda, Caio e a pequena Maria correram pelo Shopping adentro para desespero da mãe, que morria de medo de perdê-los. Foi encontrar os meninos em frente à loja de videogames, cobiçando os últimos lançamentos. Duda, a mais velha, namorava as roupas supermodernas que apareciam vitrine após vitrine, numa sucessão interminável de lojinhas atraentes. Maria parecia hipnotizada sob os luminosos piscante das doceiras cheias de guloseimas cheirosas.
Quando o pai conseguiu reunir os quatro, um som estridente abafou o som de suas vozes. Era a mais nova gravação de um grupo de rock, tocando ensurdecedoramente nos alto-falantes de uma loja de discos. Bastou uma distração durante a música e... Onde estavam eles? Tinham desaparecido outra vez.
-Ali! - chamou a mãe, indo na direção de uma grande loja de brinquedos.
Correram para lá e encontraram Marcelo e Caio experimentando os modelos incríveis de bicicletas, enquanto Maria parecia perdida em meio a quatro prateleiras cheinhas de bonecas de todas as cores, tamanhos e cheiros.
Os três foram devidamente encaminhados para fora da área perigosa e o pai seguiu com eles em direção ao objetivo da família naquele dia: uma pequena loja de sapatos.
Mas faltava alguém! Onde estava Duda?
- Você leva os três à loja e eu procuro por ela-resolveu a mãe.
Trinta butiques, quatro lojas de discos e três livrarias depois ela encontrou a ficha-indecisa entre uma lojinha de bijuterias e uma papelaria lotada de lápis, cadernos supercoloridos entre outros objetos atraentes.
Após comprarem os sapatos e tênis programados, passaram por uma lanchonete onde os doces e sanduíches pareciam muito mais gostosos nas fotografias na parede do que no prato... Até que, estômagos satisfeitos e braços cheios de pacotes, a família se encaminhou para fora do Shopping.
- Ufa!-resmungou a mãe, cansada. -Estão todos aqui.
A pequena Maria, lambendo os dedos grudentos de doce, comentou inocentemente:
- Só falta papai.
Sim, estavam todos lá-exceto o pai.
Foram encontrá-lo meia hora depois, com um ar muito sem-graça, em frente a uma loja de artigos para automóveis. Havia comprado uma série de peças metálicas estranhas, que só ele sabia para que serviam.
"Pelo menos"- pensaram os pais -, "todos ficaram satisfeitos."
Porém à noite, em casa, as compras feitas no Shopping-mesmo as mais caras- dormiam esquecidas sobre o sofá. No chão da sala, cansado mas animados, os filhos brincaram até bem tarde construindo castelos com as caixas de sapato que haviam trazido...

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O sistema

Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios da informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As falências são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão à serviço das coisas.
Eduardo Galeano, escritor uruguaio.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Lembranças à sombra de uma macieira



Mais um outono chegava e mais uma vez estava ele lá, debaixo da velha macieira, palco principal da sua infância feliz. Enquanto se protegia à sombra da grande árvore, observava as folhas mortas caírem e o céu azul com pouquíssimas nuvens, comporem uma obra-de-arte abstrata natural. Em sua cabeça, se perguntava pela milésima vez o porquê das pessoas que amamos terem que nos deixar, por que o destino o escolheu para viver uma vida tão solitária.
Enquanto fechava os olhos e sentia a brisa percorrer sua face, lembrava-se do sorriso da sua mãe, do seu beijo carinhoso, do seu toque compreensivo... Desde que se entende por gente, eram só ele e ela, mais ninguém! Quando um precisava, sabia que podia contar com a ajuda do outro. Mesmo com todas as dificuldades, era uma família feliz.
Mas a felicidade não duraria muito tempo. Até hoje ele estremece ao lembrar daqueles tempos difíceis. Ver sua mãe definhar em uma cama e ser levada ao hospital, lugar de onde nunca mais voltaria, era pior do que qualquer tipo de tortura física. Não demorou muito para que recebesse a notícia que mudaria a sua vida. Ele perdeu o chão, o seu mundo caiu, sua vida tinha acabado de perder todo o sentido. Enquanto ainda mantinha os seus olhos fechados, reviveu todos aqueles momentos de dor intensa. Era impossível conter as lágrimas que encharcavam seu rosto.
Sem perceber, acabou pegando no sono. Por um curto instante, se esqueceu de toda a dor que havia passado, de todos os momentos tristes e difíceis que viveu solitário... Sonhou que estava novamente na presença da sua mãe, de mãos dadas, em um campo de margaridas. Ele nunca irá se esquecer daquele sorriso inconfundível, do seu olhar amoroso... Nunca se esqueceria daquela sensação de felicidade.
Mas tinha que acordar. Levantou-se com um sobressalto, vestiu o seu paletó novamente e enquanto andava de volta para sua casa, olhou para trás, viu novamente aquela velha árvore, deu um sorriso e continuou o seu caminho. Seu triste e solitário caminho.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A descoberta da escrita

por Ignácio de Loyola Brandão

Muitas vezes, só mesmo uma situação completamente absurda para nos sacudir e nos fazer ver algo que não percebemos ou fingimos não perceber, de tal forma estamos mergulhados em nossa individualidade. O personagem desse conto trava uma luta incansável contra seus censores. Os poderosos da época da repressão, retratada nesse conto, julgam-se no direito de impedir qualquer manifestação. Leia-o e descubra o preço de não querer alienar-se.

Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Mentiras

E por falar em dor-de-cotovelo....
Texto baseado na música Mentiras da Adriana Calcanhoto




Não sei por que ainda perco meu tempo sentado aqui, gastando os meus preciosos pensamentos com você. Tenho que te falar que passei três anos vivendo a sua vida, abrindo mão a cada dia das coisas que antes faziam parte da minha razão de estar nesse mundo, de estar vivo. Você passou a ser o meu único combustível.
Sei que foi um erro. Ninguém pode dar mais valor a outra pessoa do que a si próprio. Mas era incontrolável, a fascinação por você me deixou cego. O seu abandono repentino foi pior do que um soco no estômago. Deixou-me louco, descontrolado.
Aproveito a ocasião para confessar que fui eu que invadi a sua casa, escrevi nas suas paredes, arranhei os seus discos, quebrei todos os seus objetos de estimação. E não fiz nem dez por cento do que planejava! Eu queria contar a todos as suas mentiras, as suas falsidades, todos s seus podres! Queria te desmoralizar, te deixar arrasado do mesmo jeito que você me deixou. A minha vontade era de mostrar às pessoas quem realmente você é, desmascará-lo para que todos vissem a sua verdadeira face que só eu conhecia.
Quem sabe assim, eu não conseguisse chamar a sua atenção? Quem sabe assim, não perceberia que sou o seu único refúgio, a única pessoa que o entende e o aceita como é... Quem sabe assim, você não olharia para mim.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Truques e Táticas

por Carlos Queiroz Telles

Enquanto curto uma crise básica de criatividade e uma gripe daquelas, resolvi publicar esse texto que com certeza descreve o momento "dor-de-cotovelo" que todos passam pelo menos uma vez!
=D

Meu último amor eterno
acabou ontem

Que sofrimento de cão!
Depois de tanta paquera,
beijo e abraço,
carinho e amasso,
carta e até presente...
ele me joga na cara
que não há mais nada
entre a gente,
que está tudo acabado
e já não gosta de mim!

Mas isso não fica assim!
Eu vou partir para a luta,
eu vou virar uma fera,
eu vou deixar ele louco,
arrependido, arrasado,
doido, babando, pirado,
implorando o meu perdão!
(...)