sexta-feira, 9 de maio de 2008

A descoberta da escrita

por Ignácio de Loyola Brandão

Muitas vezes, só mesmo uma situação completamente absurda para nos sacudir e nos fazer ver algo que não percebemos ou fingimos não perceber, de tal forma estamos mergulhados em nossa individualidade. O personagem desse conto trava uma luta incansável contra seus censores. Os poderosos da época da repressão, retratada nesse conto, julgam-se no direito de impedir qualquer manifestação. Leia-o e descubra o preço de não querer alienar-se.

Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.

12 comentários:

Everaldo Ygor disse...

Olá...
Mas que belo texto esse ai...
Realmente faz pensar... Ao ler e reler, fez com que eu mexesse em poesias antigas, guardadas em caixas empoeiradas...
Abraços
Everaldo Ygor
Visite:
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Anônimo disse...

Muito bom o texto, o blog, e tudo mais.
Passe lá no meu blog:
http://lusaid.zip.net

Anônimo disse...

Fez-me lembrar Contos Proibidos do Marquês de Sade. Filmaço. Taí uma boa pedida pra um final de tarde de domingo. Topa?

Anônimo disse...

Um texto super bem trabalhado, lapidado, eu diria. Construído em pura metalinguagem. Assim podemos imaginar como se constrói solidamente um discurso.
Parabéns!

Dih Fernandes disse...

Ótimo texto!!!
Faz a gente refletir sobre es ta arte, a escrita.

http://dihdusbeko.blogspot.com/

Anônimo disse...

Um belo exemplo do que uma pessoa é capaz de fazer com as palavras, que separadas podem ser tao diferentes e juntas se encaixam perfeitamente


Fico na espera da sua visita
http://tvcinemaemusica.wordpress.com

danii disse...

muito bom texto....
como todo o blog....
bjksss

www.daniilopes.blogspot.com

Unknown disse...

Ótimo texto, deu até vontade de reler. Muito bem feito, gostei mt.

Vou visitar o blog mais vezes.

Parabéns!

www.blogbyvinny.blogspot.com

Everaldo Ygor disse...

Olá...
Revisitando por aqui, e relendo esse belo texto...
Abraços
Everaldo Ygor
http://outrasandancas.blogspot.com/

Luis Felipe Afonso disse...

demais esse texto!! mostra que mesmo nas adversidades, se temos certeza do que queremos, não devemos desistir, mas sim passar sobre os obstáculos!

Anônimo disse...

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masimundus semikonecolori

Anônimo disse...

EVERALDO NÃO E QUERENDO SER MAIS QUE VOCê MAIS ISSO AI NÃO E UM TEXTO E SIM UM CONTO

ESSE CONTO ELE E MUITO INTERRESSANTE EU TENHO 13 ANOS A MINHA PROFESSORA ME PASSOU UMA PROVA EM CIMA DELE ELE E MUITO INTERESSANTE