domingo, 2 de novembro de 2008

Os filmes nacionais e eu

Sempre fui muito crítico em relação a filmes nacionais, os palavrões e a pornografia que são usados indiscriminadamente pelos diretores brasileiros sempre me incomodaram, me fazendo não gostar realmente de filmes feitos aqui no Brasil.
Meus amigos sempre me criticavam por isso, diziam que é preciso prestigiar as produções daqui e não os ditos "enlatados" americanos. Para tentar me livrar do rótulo de preconceituoso eu tentei... Mas não conseguia ver em filmes como "Cidade de Deus" ou "Carandiru" nenhum tipo de recado legal, eles não conseguiam me prender.
Tentei assistir algo diferente, fui até ver uma comédia. Peguei o meu dinheiro e vi "Casa da mãe Joana", ô se arrependimento matasse!
Roteiro sem nexo, se graça, sem tudo!
E assim eu continuei odiando filmes nacionais.
Até hoje.
Confesso que quando me chamaram para assistir "Última parada 174", não tinha me caído a ficha de que era um filme nacional. Eu estava a fim de assistir um filme e qualquer um que viesse estaria de bom tamanho. Só vi que era brasileiro mesmo, quando eu cheguei ao cinema. Congelei. As minhas últimas tentativas não tinham sido muito proveitosas, não seria agora que a minha opinião iria mudar! Entrei no cinema falando horrores, morrendo de raiva por ter sido trago às cegas para assistir um filme nacional.
Mas eu tenho que confessar que eu queimei a língua.
O filme tem tudo que eu sempre detestei em filmes nacionais, palavrões, pornografia, violência... Mas há muito tempo que eu não vejo um filme com uma carga emocional tão grande.
É duro ver as histórias de dois meninos com o nome igual e com a mesma idade, que crescem em duas situações complicadíssimas e que se entrelaçam e terminam em uma trágica tragédia. O filme contou muito bem o drama das crianças que são jogadas pela vida no crime, moldando o seu caráter com a sujeira e a vermelhidão de sangue inocente.
Continuo achando que para se ter um bom filme não é necessário mostrar miséria, ou apelar para a sensualidade, mas eu tenho que confessar que a "Última parada 174" me fez ainda acreditar no cinema nacional e me fez entrar na torcida para que ele concorra ao Oscar e quem sabe até, que ele vença!
Abaixo está o trailer do filme. Vale a pena ;D


segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Again...

A temporalidade é uma coisa bem engraçada. Às vezes passamos anos ou até décadas da nossa vida sem nenhum tipo de mudança. Ou estamos sendo felizes e não nos peocupamos com isso, ou vivemos uma vida mesquinha à qual imploramos ao destino que faça o minimo favor de mudar, levar-nos.
Mas a vida também pode dar-nos uma reviravolta em um piscar de olhos, podemos estar hoje aqui em frente ao computador, tendo uma vida pacata e sem nenhuma novidade, e daqui à uma semana estar em um lugar distante fazendo uma coisa que somente um louco tem coragem de fazer.
Digo isso para uma melhor compreensão, mas as mudanças mais recompensadoras e frequentes são as pequena e simples.
Vejo isso por mim, há um ano atrás eu era um mero estudante de ensino médio, pré vestibulando sem nenhuma perspectiva de futuro. Hoje estou eu em uma universidade pública, cursando o segundo semestre de um excelente curso e com um emprego, um trabalho bem simples, mas um trabalho.
Me sinto uma pessoa mais responsável (na medida do possivel, afinal temos de levar em consideração que tenho 18 anos), tenho uma pessoa do meu lado que além de me fazer a pessoa mais feliz do mundo, me faz crescer e está sempre segurando a minha mão na horas em que eu enfrento minhas responsabilidades.
Tenho uma família normal que apesar de não ser a melhor do mundo me ama e se preocupa comigo, tenho amigos antigos que apesar de distantes continuam a me amar como sempre, e tenho novos amigos que tornam os meus dias um tanto mais alegres...
Não são mudanças extremas e penso que você pode até estar pensando "que besteira"...Mas para mim que estou no meio desse redemoinho, é a mudança mais drástica que poderia me acontecer. Sem falar que são nessas peqenas coisas que o meu caráter sofre as maiores transformações.
Enfim,
esse negócio de temporalidade é muito engraçado...

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O porão debaixo da escada


Era um lindo dia de domingo, ensolarado até não poder mais. Carol tinha dado uma pequena fugida daquele almoço em família e estava ali, debaixo da escada. Podia ouvir ao longe as gargalhadas dos seus pais, tios, primos... Mas antes de se juntar àquela algazarra, resolveu ficar um pouco ali.
A partir de amanhã, tudo iria mudar. O início da faculdade, a mudança para outra cidade, a casa nova e o início de sua independência. Na verdade, Carol não tinha muita certeza se estava muito pronta para isso. Com certeza morar sozinha seria um passo muito grande! E se não estivesse preparada? Mil coisas passavam em sua cabeça e nada melhor do que o velho porão debaixo da escada, para ajudar a refletir. Com certeza, aquele lugar havia sido o palco principal de suas travessuras infantis. Era lá onde brincava com suas bonecas, onde escrevia em seu diário, ou onde suspirava por um garoto bonito.
Momentos marcantes da sua vida, que infelizmente não voltarão mais. Carol sentia naquela hora, as mesmas borboletas na barriga que sentiu ao se ver em seu baile de debutantes, ao entrar em um novo colégio onde não conhecia ninguém, ao ter o seu primeiro beijo... Era um misto de ansiedade e apreensão. Não que ela não gostasse de novidades, pelo contrário. Mas sabia que ao pisar naquela nova cidade, sua vida sofreria uma reviravolta e Carol não podia esconder o seu temor.
Enquanto olhava para aquele lugar sujo e acolhedor, ouviu muitas risadas. Com certeza papai começou a contar mais uma de suas piadas infames! - pensou. Aquela era a sua deixa. Ia voltar à festa e depois iria ao encontro do seu futuro. Mas sem se esquecer é claro, do velho porão debaixo da escada.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Com pressa

Passei correndo pela sala de jantar usando meu melhor vestido, concentrada em me preparar para um encontro de negócios noturno. Gillian, minha filha de quatro anos, estava dançando ao som de sua música favorita, Cool, do filme Amor, sublime amor.
Eu estava com pressa à beira de chegar atrasada. No entanto uma vozinha dentro de mim disse: "Pare".
Então parei. Olhei para ela. Aproximei-me, peguei sua mão e a rodopiei. Minha filha de sete anos, Caitlin, entrou na nossa órbita e eu também a peguei. Nós três dançamos alucinadamente pela sala de jantar até chegarmos à sala de estar. Ríamos. Rodopiávamos. Será que os vizinhos podiam ver a loucura pelas janelas? Não tinha importância. A música chegou ao fim com um floreio dramático e nossa dança terminou com ela. Dei um tapinha em seus traseiros e mandei que fossem tomar banho.
Ela subiram as escadas, sem fôlego, seus risinhos ricocheteando pelas paredes. Voltei aos meus afazeres. Estava dobrada para a frente, enfiando papéis em uma pasta, quando ouvi a mais nova falar para a irmã.
-Caitlin, você não acha que a mamãe e a mais melhor de todas?
Congelei. Eu quase correra pela vida, perdendo aquele momento. Meu pensamento foi para os prêmios e os diplomas que cobriam as paredes do meu escritório: Nenhum prêmio, nenhuma realização que eu jamais alcançara, poderia se comparar a isso: "Você não acha que a mamãe é a mais melhor?"
Minha filha disse isso quando tinha quatro anos. Não espero que ela o diga com quatorze. Mas, aos quarenta, se ela se inclinar por cima daquela caixa de pinho para dizer adeus para o recipiente descartado da minha alma, quero que o diga:
"Mamãe nao é a mais melhor?"
Não combina com o meu currículo. Mas quero isso gravado na minha lápide.

Gina Barret Schlesinger
Extraído do livro "Histórias para aquecer o coração", da editora Sextante.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Procura-se um amor

Procuro um amor. Mas não um amor qualquer... Estou à procura de algo que nunca senti, nunca experimentei. Quero entregar a minha vida para vivê-lo, quero que se torne a motivação dos meus sorrisos, o iniciar de todas as minhas alegrias. Desejo um sentimento tão forte, que consiga apagar todas as dores que já vivi, que me ajude a trancar em um calabouço profundo, todas as lágrimas que já chorei.
Na minha incansável busca, irei procurar em todos os lugares que irei passar. Sei que posso encontrá-lo em um supermercado, numa lavanderia ou em uma esquina qualquer. Estarei sempre prestando atenção ao meu coração que como um imã, será instantaneamente atraído pela minha outra metade.
Quando encontrá-lo, saberei desfrutar todos os momentos, as piadas sem graça, as idas ao cinema, as tardes na frente da televisão, rindo sem parar dos cretinos programas vespertinos... Irei compartilhar todas as suas dores, chorarei todas as suas tristezas, mas também me alegrarei com suas alegrias e comemorarei as suas conquistas. Contarei os meus segredos mais íntimos, sei que não terá medo e sei também que me ajudará a carregar pesos que nunca imaginei compartilhar.
Enquanto o meu amor não chega, estarei me preparando. E incansavelmente irei procurar. Mais cedo ou mais tarde, eu encontrarei. Encontrarei minha razão para viver.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O ato de estudar

por Paulo Freire

Tinha chovido toda a noite. Havia enormes poças de água nas partes mais baixas do terreno. Em certos lugares a terra, de tão molhada, tinha virado lama. Às vezes, mais do que escorregar, os pés se atolavam na lama até acima dos tornozelos. Era difícil andar. Pedro e Antônio estavam transportando numa camioneta cestos cheios de cacau para o sítio onde deveriam secar. Em certa altura, perceberam que a camioneta não atravessaria o atoleiro que tinham pela frente. Pararam. Desceram da camioneta. Olharam o atoleiro, que era um problema para eles. Atravessaram os dois metros de lama, defendidos por suas botas de cano longo. Sentiram a espessura do lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois, com a ajuda de algumas pedras e galhos secos de árvores, deram ao terreno a consistência mínima para que as rodas da camioneta passassem sem se atolar. Pedro e Antônio estudaram. Procuraram compreender o problema que tinham a resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa. Não se estuda só na escola. Pedro e Antônio estudaram enquanto trabalhavam.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ninguém em casa



Texto baseado na música Nobody's Home da Avril Lavigne





Seu grito cortou o frio gélido da noite, enquanto jogava para cima o papelão sujo e fétido que usava como um cobertor, cobrindo o seu corpo sofrido naquela já tão conhecida calçada. Mas pesadelos para ela não eram nada comparados à sua realidade. Quando se acalmou, riu de si mesma. Que tolice gritar! Ela estava completamente sozinha. Para ser sincera há muito tempo ela se vê completamente sozinha.
Ah, como invejava as pessoas que via nas ruas, com uma família saudável, feliz, que as amava... Ela nunca viveu assim. Seu pai abandonou sua família quando era muita criança, a partir daí sua mãe se mergulhou no álcool, perdeu toda a vontade de viver, e passou a ver em sua filha, o espelho de sua relação frustrada, descontando sempre na garota toda a sua amargura. Quem sabe assim não conseguisse expiar os seus pecados? Era assim que sua mãe a via, como um cordeiro que com o seu sofrimento aliviaria toda a sua culpa. Era isso que a maldita bebida lhe mandava fazer, como um demônio que a usava como uma marionete, a fim de se divertir com a sua desgraça.
A menina não pôde mais agüentar todas aquelas agressões físicas e morais. Em uma noite, reuniu toda a coragem que possuía, arrumou suas tão poucas roupas e foi embora. Foi para nunca mais voltar, para nunca mais ser humilhada novamente. As lágrimas escorriam sem parar, mas era necessário. Ela tinha que ir embora.
Desde aquele dia passou a chamar a calçada daquela movimentada avenida de lar, passou a sobreviver somente. O período de adaptação foi muito difícil, mas seus instintos de sobrevivência foram cruciais, tornando-a mais uma daquelas pessoas que vivem corajosamente sem um teto. Ah, como ela queria voltar par casa, para o seu verdadeiro lar... Mas não há ninguém em casa, não existe casa.
Depois de se recuperar do pesadelo, ela voltou a se cobrir e fechou seus olhos. Tinha que dormir mais um pouco, mais tarde o sol ia surgir e o seu "lar" estaria lotado de pessoas andando para todos os lados. E ela teria que voltar a sua rotina, teria que passar o dia garantindo mais um dia de vida. Afinal, mesmo se sentindo vazia por dentro, mesmo sua vida não tendo sentido, ela tinha que sobreviver.


domingo, 25 de maio de 2008

Compras

A entrada do Shopping Center parecia a boca de uma baleia luminosa, pronta para engolir a família de Marcelo. Tinham ido todos juntos fazer compras, embora o pai suspirasse de vez em quando durante o caminho, como que dizendo "Isso vai sair caro..."
Marcelo, Duda, Caio e a pequena Maria correram pelo Shopping adentro para desespero da mãe, que morria de medo de perdê-los. Foi encontrar os meninos em frente à loja de videogames, cobiçando os últimos lançamentos. Duda, a mais velha, namorava as roupas supermodernas que apareciam vitrine após vitrine, numa sucessão interminável de lojinhas atraentes. Maria parecia hipnotizada sob os luminosos piscante das doceiras cheias de guloseimas cheirosas.
Quando o pai conseguiu reunir os quatro, um som estridente abafou o som de suas vozes. Era a mais nova gravação de um grupo de rock, tocando ensurdecedoramente nos alto-falantes de uma loja de discos. Bastou uma distração durante a música e... Onde estavam eles? Tinham desaparecido outra vez.
-Ali! - chamou a mãe, indo na direção de uma grande loja de brinquedos.
Correram para lá e encontraram Marcelo e Caio experimentando os modelos incríveis de bicicletas, enquanto Maria parecia perdida em meio a quatro prateleiras cheinhas de bonecas de todas as cores, tamanhos e cheiros.
Os três foram devidamente encaminhados para fora da área perigosa e o pai seguiu com eles em direção ao objetivo da família naquele dia: uma pequena loja de sapatos.
Mas faltava alguém! Onde estava Duda?
- Você leva os três à loja e eu procuro por ela-resolveu a mãe.
Trinta butiques, quatro lojas de discos e três livrarias depois ela encontrou a ficha-indecisa entre uma lojinha de bijuterias e uma papelaria lotada de lápis, cadernos supercoloridos entre outros objetos atraentes.
Após comprarem os sapatos e tênis programados, passaram por uma lanchonete onde os doces e sanduíches pareciam muito mais gostosos nas fotografias na parede do que no prato... Até que, estômagos satisfeitos e braços cheios de pacotes, a família se encaminhou para fora do Shopping.
- Ufa!-resmungou a mãe, cansada. -Estão todos aqui.
A pequena Maria, lambendo os dedos grudentos de doce, comentou inocentemente:
- Só falta papai.
Sim, estavam todos lá-exceto o pai.
Foram encontrá-lo meia hora depois, com um ar muito sem-graça, em frente a uma loja de artigos para automóveis. Havia comprado uma série de peças metálicas estranhas, que só ele sabia para que serviam.
"Pelo menos"- pensaram os pais -, "todos ficaram satisfeitos."
Porém à noite, em casa, as compras feitas no Shopping-mesmo as mais caras- dormiam esquecidas sobre o sofá. No chão da sala, cansado mas animados, os filhos brincaram até bem tarde construindo castelos com as caixas de sapato que haviam trazido...

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O sistema

Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios da informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As falências são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão à serviço das coisas.
Eduardo Galeano, escritor uruguaio.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Lembranças à sombra de uma macieira



Mais um outono chegava e mais uma vez estava ele lá, debaixo da velha macieira, palco principal da sua infância feliz. Enquanto se protegia à sombra da grande árvore, observava as folhas mortas caírem e o céu azul com pouquíssimas nuvens, comporem uma obra-de-arte abstrata natural. Em sua cabeça, se perguntava pela milésima vez o porquê das pessoas que amamos terem que nos deixar, por que o destino o escolheu para viver uma vida tão solitária.
Enquanto fechava os olhos e sentia a brisa percorrer sua face, lembrava-se do sorriso da sua mãe, do seu beijo carinhoso, do seu toque compreensivo... Desde que se entende por gente, eram só ele e ela, mais ninguém! Quando um precisava, sabia que podia contar com a ajuda do outro. Mesmo com todas as dificuldades, era uma família feliz.
Mas a felicidade não duraria muito tempo. Até hoje ele estremece ao lembrar daqueles tempos difíceis. Ver sua mãe definhar em uma cama e ser levada ao hospital, lugar de onde nunca mais voltaria, era pior do que qualquer tipo de tortura física. Não demorou muito para que recebesse a notícia que mudaria a sua vida. Ele perdeu o chão, o seu mundo caiu, sua vida tinha acabado de perder todo o sentido. Enquanto ainda mantinha os seus olhos fechados, reviveu todos aqueles momentos de dor intensa. Era impossível conter as lágrimas que encharcavam seu rosto.
Sem perceber, acabou pegando no sono. Por um curto instante, se esqueceu de toda a dor que havia passado, de todos os momentos tristes e difíceis que viveu solitário... Sonhou que estava novamente na presença da sua mãe, de mãos dadas, em um campo de margaridas. Ele nunca irá se esquecer daquele sorriso inconfundível, do seu olhar amoroso... Nunca se esqueceria daquela sensação de felicidade.
Mas tinha que acordar. Levantou-se com um sobressalto, vestiu o seu paletó novamente e enquanto andava de volta para sua casa, olhou para trás, viu novamente aquela velha árvore, deu um sorriso e continuou o seu caminho. Seu triste e solitário caminho.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A descoberta da escrita

por Ignácio de Loyola Brandão

Muitas vezes, só mesmo uma situação completamente absurda para nos sacudir e nos fazer ver algo que não percebemos ou fingimos não perceber, de tal forma estamos mergulhados em nossa individualidade. O personagem desse conto trava uma luta incansável contra seus censores. Os poderosos da época da repressão, retratada nesse conto, julgam-se no direito de impedir qualquer manifestação. Leia-o e descubra o preço de não querer alienar-se.

Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Mentiras

E por falar em dor-de-cotovelo....
Texto baseado na música Mentiras da Adriana Calcanhoto




Não sei por que ainda perco meu tempo sentado aqui, gastando os meus preciosos pensamentos com você. Tenho que te falar que passei três anos vivendo a sua vida, abrindo mão a cada dia das coisas que antes faziam parte da minha razão de estar nesse mundo, de estar vivo. Você passou a ser o meu único combustível.
Sei que foi um erro. Ninguém pode dar mais valor a outra pessoa do que a si próprio. Mas era incontrolável, a fascinação por você me deixou cego. O seu abandono repentino foi pior do que um soco no estômago. Deixou-me louco, descontrolado.
Aproveito a ocasião para confessar que fui eu que invadi a sua casa, escrevi nas suas paredes, arranhei os seus discos, quebrei todos os seus objetos de estimação. E não fiz nem dez por cento do que planejava! Eu queria contar a todos as suas mentiras, as suas falsidades, todos s seus podres! Queria te desmoralizar, te deixar arrasado do mesmo jeito que você me deixou. A minha vontade era de mostrar às pessoas quem realmente você é, desmascará-lo para que todos vissem a sua verdadeira face que só eu conhecia.
Quem sabe assim, eu não conseguisse chamar a sua atenção? Quem sabe assim, não perceberia que sou o seu único refúgio, a única pessoa que o entende e o aceita como é... Quem sabe assim, você não olharia para mim.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Truques e Táticas

por Carlos Queiroz Telles

Enquanto curto uma crise básica de criatividade e uma gripe daquelas, resolvi publicar esse texto que com certeza descreve o momento "dor-de-cotovelo" que todos passam pelo menos uma vez!
=D

Meu último amor eterno
acabou ontem

Que sofrimento de cão!
Depois de tanta paquera,
beijo e abraço,
carinho e amasso,
carta e até presente...
ele me joga na cara
que não há mais nada
entre a gente,
que está tudo acabado
e já não gosta de mim!

Mas isso não fica assim!
Eu vou partir para a luta,
eu vou virar uma fera,
eu vou deixar ele louco,
arrependido, arrasado,
doido, babando, pirado,
implorando o meu perdão!
(...)

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Vampiro





Leonardo abriu seus olhos e percebeu que estava caído no chão. Levantou-se com a cabeça ainda confusa e com uma dor lancinante em seu pescoço. Ainda era noite e Leonardo tinha apenas algumas poucas lembranças de que havia acontecido antes de "apagar". Lembrava-se de ter saído para pensar um pouco sobre o fim abruto de seu namoro, era muito tarde e as ruas estavam completamente desertas. Recordava-se também, ter ouvido ruídos de passos que o seguiam, de ter visto um vulto gigantesco e... de ter sido atacado por alguém antes de desmaiar.
O coração de Leonardo deu um sobressalto. Como depois de ser atacado na rua, ele havia ido parar no seu quarto? As coisas não faziam sentido! Mas o turbilhão de pensamentos que rodeava a sua cabeça foi abafado por uma fome que ele nunca havia sentido antes e uma vontade enlouquecida de sangue. O mais puro e vermelho sangue.
Foi quando Leonardo associou o vulto na rua, o ferimento no pescoço e a sede de sangue. "Não pode ser!"-pensou-"Vampiros não existem, e mesmo se existissem eles atacariam donzelas incautas, não eu!". Correu para o espelho para provar a si mesmo que era pura imaginação da sua cabeça. Mas o que ele viu só fez confirmar as suas suspeitas. Não havia o seu reflexo ali, ele verdadeiramente havia se tornado um vampiro!
O terror tomou conta do seu corpo. Tinha que se esconder! Tinha que ir para um lugar bem longe, onde não pudesse machucar ninguém. Mas seus instintos “vampirescos” recém adquiridos eram mais fortes que a sua razão. Abriu a janela do seu quarto, olhou a lua cheia que o iluminava com uma luz lúgubre e sem pensar em mais nada, abriu os seus braços e saiu pelo céu, à procura de sangue para se alimentar.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Eu ou ele

Édson acordou com a sensação de que alguma coisa estava errada. O travesseiro mole demais, o cobertor áspero... Não tinha ainda aberto os olhos quando ouviu uma voz estranha a chamá-lo:
- Hora de levantar, Luís!
Que era hora de levantar-se, ele sabia. Mas... Luís era seu amigo de colégio, por que o estariam chamando pelo nome dele?
Sentou-se na cama e olhou ao redor, tentando ligar os pensamentos e descobrir o que estaria fazendo num quarto tão diferente do seu.
A mesma voz de antes chamou ao longe:
- Quer se levantar de uma vez, ô Luís?
De repente, entendeu. Era a ele que estavam chamando, porque achavam que ele era Luís. Aquele travesseiro molenga, o cobertor áspero, o quarto estranho, tudo pertencia a seu amigo. Estava na casa de Luís. Mas como fora parar ali?
O sono era tanto que Édson quase não conseguiu levantar-se para ir até o guarda-roupa. Sabia que havia um espelho na terceira porta do guarda-roupa, embora não entendesse como sabia daquilo, já que ele era Édson, e não Luís, o dono do quarto.
Olhou-se no espelho e viu-se vestido num pijama azul que nunca vira, os olhos sonolentos abertos com muito custo, os cabelos despenteados. Não podia ser verdade: aquele que olhava do outro lado do espelho não era Édson, era Luís.
Quase caiu sentado no chão, o coração disparado. O que estava acontecendo? Tinha certeza que se chamava Édson, dormira ontem em seu quarto, em casa, com o irmão e a mãe, como, então, acordara em uma casa estranha-com um rosto e um corpo estranhos?!
Conseguiu arrastar-se de volta à cama, deitou-se, cobriu-se. Aquilo era um sonho. Tinha de ser! Se dormisse, acordaria de verdade e seria ele mesmo de novo, Édson, em seu quarto, o irmão dormindo na cama ao lado, o travesseiro duro, o cobertor macio. Em sua casa. Aquilo tudo não passava de um sonho, um pesadelo.
Estava adormecendo, quando um novo pensamento, ainda mais estranho de que tudo o que acontecera, insinuou-se em sua mente.
E se fosse o contrário? E se ele fosse realmente Luís? E se toda a vida que conhecera com o nome de Édson é que fosse um sonho? Agora, ele estaria simplesmente acordando para a vida real. Lembrou-se de seu aspecto no espelho, de pijama azul, olhos semi-cerrados, cabelos desalinhados. Ele era Luís. Ou não?
O sono voltava uma onda quente cobrindo seus pensamentos. Precisava dormir... Dormir... Dormir. E adormeceu sem saber se, quando acordasse, seria Luís ou seria Édson.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Doloroso Adeus


de Cícero Pedro de Assis
Mexendo nas minha coisas, encontrei alguns livros de cordel que eu havia comprado no inicio do ano na minha viagem a João Pessoa- Pb. Esse poema me chamou logo a atenção! Ele possui uma carga emocional muito forte, e mostra a triste realidade da seca no nordeste...

Adeus minha doce esposa!
Pedaço da minha vida!
Minha querida rainha!
Minha rosa preferida!
Reduto do meu amor
Logo mais farei partida!

Só vou embora daqui,
Porque não encontro ganho!
A nossa terra cansada
só tem pobreza e tamanho!
Chorarei muito por ti
Naquele lugar estranho.
Escrevo sempre pra ti
Preciso sempre saber
Meu amor como tu vais,
Pois não irei te esquecer.
Distante do teu carinho
Não sei como irei viver...

Deus me aponte um bom emprego,
Para que eu possa voltar
O mais depressa possível
A este velho lugar,
Para calar teu pranto
E também me consolar.

Se eu pudesse te levar,
Jamais iria sozinho,
Tristonho, desesperado,
Chorando sempre baixinho,
Reclamando pra mim mesmo
Do meu fadário mesquinho.
Adeus, meu amor, Adeus!
Adeus, que já vou partir!
Sinto enorme punhalada
Meu pobre peito ferir.
Não querendo te deixar,
É triste me despedir!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

A bruxa

Grande história da minha infância :D




Aquela porta devia ter uns cem anos no mínimo. Toquei a campainha da casa cinzenta e fiquei esperando, tentando disfarçar o medo que sentia por estar à casa de uma bruxa. Que a velha senhora que morava ali era bruxa, disso não havia a menor dúvida: todos na rua comentavam o fato. "Ela deve ter saído" - pensei, esperançoso, vendo que ninguém aparecia para atender. Mas antes que pudesse ir embora, ouvi passos do outro lado da porta, aproximando-se. Eram passos lentos e pesados; agora eu teria de esperar e entregar o pacote que minha mãe mandara. - Droga!- resmunguei baixinho. A porta se abriu com um nhec sinistro, e logo eu vi o rosto da estranha mulher aparecer junto ao batente.
- Quem é você?- disse a velha com uma voz rouca (que me pareceu bem apropriada para pronunciar encantamentos).
- Sou filho da dona Vera, ali na frente. Ela mandou entregar este pacote para a senhora.
A bruxa olhou bem pra mim, abriu a porta inteira e ordenou:
- Entre.
Engoli em seco. Entrar?... Naquela casa?...
- Não obrigado, eu só vim entregar o pacote da minha mãe...
Estendi o embrulho para a velha, mas ela já se afastava pelo corredor, fazendo sinal para que a seguisse.
Sem saber por que, obedeci. Tremendo, entrei por um corredor escuro e longo. Ouvi a porta fechar-se sozinha atrás de mim com um blam que ecoou por toda a casa. (Mágica?) Tentei não pensar naquilo. Tratei de seguir o passo lento e pesado da bruxa.
O corredor não acabava nunca, e eu quase não olhava para os lados, com medo de que pudesse ver. Vislumbrei portas fechadas, coisas se mexendo (ratos?), teias de aranha e um objeto indistinto que parecia um esqueleto, rente à parede. Finalmente uma luz surgiu no fim do corredor, segui a bruxa para a cozinha iluminada. Lá um caldeirão de água fervia sobre o velhíssimo fogão.
- Pode pôr o pacote aí - disse a velha, indicando a mesa.
Coloquei o embrulho sobre a mesa e olhei em volta. Vi ramos de ervas e raízes pendurados pelas paredes, móveis rústicos e prateleiras cheias de vidros em formatos estranhos. Sobre pequenas estantes vi panelas de ferro e livros gastos, amarelados.
A mulher mexeu a água fervente com uma grande concha; encheu duas xícaras com água, colocou-as sobre a mesa.
- Sente-se e tome chá - resmungou a bruxa. Tirou do armário alguns saquinhos de chá, desses que são vendidos no supermercado.
Sentei-me. A velha pusera sobre a mesa um açucareiro e uma lata de biscoitos que pareciam biscoitos normais.
"Pelo menos" - pensei, enquanto colocava o saquinho na água fervente - "não é chá de sapo ou de morcego!"
Fiquei imaginando a cara dos meus amigos, quando contasse a eles.
Já não sentia medo. Pelo contrário, começava a achar que ser uma bruxa deveria ser bem mais interessante do que ser uma dona de casa como a minha mãe. Em pouco tempo, senti na boca o gosto tão conhecido do chá e dos biscoitos torradinhos, comecei a duvidar de que aquela velha fosse, realmente, uma bruxa. Talvez fosse apenas mais uma pessoa solitária, como tantas outras.

sábado, 5 de abril de 2008

1997

Texto baseado na música 1997 da banda Hateen.
Era novembro de 1997, e até hoje não sei muito bem como aconteceu. Só sei que enquanto estava à procura de um emprego, acabei achando a mulher da minha vida. Linda... Incrivelmente linda. Ela estava lá, atrás do balcão daquela loja. Seus cabelos bem penteados, e seus dentes muito brancos. Não lembro muito bem, mas sei que horas depois, estávamos em uma lanchonete, nos beijando. E meses depois estávamos morando juntos.
Foram os dias mais felizes da minha vida! Mesmo com todas as dificuldades do dia-a-dia, nunca me esquecerei de quando acordava e ficava a observando enquanto dormia. Seu rosto perfeitamente desenhado, o seu compassado respirar... Eu a amava em seus mínimos detalhes. Queria ser o único a repará-los. Queria o seu sorriso só para mim. Às vezes tínhamos pequenas brigas, mas não duravam muito. Nossa cumplicidade era mais forte.
Ela era muito popular. Sua inteligência e simpatia funcionavam como imã, atraindo as pessoas ao seu redor. Para falar a verdade, não gostava muito dos seus amigos. Sei que aqueles sorrisos forçados, às minhas costas se tornavam críticas e insultos. Bom, mas isso não importa mais.
Em um belo dia, esse sonho se dissipou. A mulher que eu amava já não me amava mais. Falou que eu sempre seria uma lembrança maravilhosa em sua vida, mas não podia mais ficar. Eu perdi o chão. Não conseguia mais viver sem sentir aquele corpo, aquela boca, ouvir a sua voz.
Eu não sabia o que fazer. Andava sem rumo pelas ruas, bêbado, tropeçando nos meus próprios pés. Não tinha mais razão para estar vivendo. Ela era tudo o que eu tinha! Às vezes eu a encontrava pela rua. Tentava a todo custo, dizer o quanto eu a amava e o quanto senti a sua falta. Mas engasgava. Enquanto ela apenas ria e dizia: "Tudo vai acabar bem".
Dez anos se passaram, e só agora consegui entender que a minha vida tinha que continuar. Eu não podia interrompê-la, por alguém que não me queria mais. Se continuasse, só ia conseguir me destruir cada vez mais. Hoje eu tenho uma nova vida.
Na verdade, não sei como cheguei aqui. O sofrimento tomou conta de mim por muito tempo. Mas hoje eu sou feliz novamente. A falta que eu sentia dela quase me matou, mas hoje eu tenho tudo o que eu sempre quis em toda a minha vida.
Mas eu ainda me lembro daquele novembro de 1997. Ainda me lembro de tudo o que eu quero esquecer.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Definições do amor


O amor é extremo,

pode te fazer bem, ou te fazer mal.

Às vezes é coberto com açúcar;

mas tem horas que é cheio de sal.


O amor é traiçoeiro,

e te faz ansiar um simples telefonema.

Te dá frio na barriga,

por um simples convite ao cinema.


O amor às vezes é platônico,

e te leva loucamente a chorar.

Enquanto aquele que tu amas,

só faz pouco caso do que venhas a falar.


O amor é cafona,

apelidos ridículos brotam da sua boca.

Leva-te a fazer as piores loucuras;

te transforma num competo "cabeça oca"!


Mas o amor é inevitável,

não tente fugir como eu...

Um dia ele irá tomar seu coração.

e te mostrará sensações que nunca conheceu!

sábado, 29 de março de 2008

Ama

(por Georgeton Correia)

Conta uma antiga lenda oriental que os humanos eram seres perfeitos, com duas faces, uma apontando para o norte e a outra para o sul. Invejoso de tamanha perfeição, um deus teria lançado um raio dividindo o homem ao meio, cada novo indivíduo com um único rosto, num corpo distinto. Desde então, o homem passa a sua vida inteira à procura de sua cara-metade, ou do ser que irá completar-lhe tornando-o perfeito mais uma vez. O amor seria, assim, a energia magnética que faria os dois pólos atraírem-se mutuamente, rumo ao equilíbrio. Esse seria um final feliz, não fôssemos nós excessivamente racionais e descrentes na existência de coisas que não se podem comprovar, explicar; e isso inclui as lendas.

O medo de amar é a maior causa das angústias do homem. Somos todos essencialmente covardes por não aceitarmos essa necessidade básica de nossas vidas. E assim, sufocamos esse sentimento, matando junto com ele uma parte preciosa de nós mesmos. Evitamos, inconscientemente, nos apaixonar. Procuramos incansavelmente um ser perfeito porque sabemos, lá no fundo, que ele não existe. “Este não serve: é baixo demais”; “aquele outro é negro demais”; “aquele é branco, não me agrada”. E assim, fugimos, nos esquivamos... Tememos aquilo que não conhecemos. E como o amor é o mais inconceituável dos sentimentos, evitamo-lo.

Oxalá alguém nos revelasse a real função de tão controverso sentimento. Esse arrebatador de almas que tira o sono ao escritor e faz ferver o sangue ao leitor. Esse delicioso narcótico sem contra-indicações, capaz de fazer agir passionalmente até o maior dos céticos. Esse bichinho invisível que nos corrói a alma em noites insones, enquanto não encontramos uma cara-metade que apazigúe a sua fúria. Essa caixa de Pandora às avessas, que uma vez aberta inunda nosso mundo de cores, perfumes e sensações inebriantes, obliterando – ainda que em caráter temporário – as mazelas que nos cercam cotidianamente.

Ah, o amor... Somente um romântico inveterado conhece os benefícios do maior dos sentimentos humanos. O amor é o mais eficiente entre os bálsamos: ele é capaz de curar até mesmo as mais profundas feridas. E o que te importa se não sabes conceituá-lo? A ti te basta senti-lo. E se ainda não encontraste a tua cara-metade da qual fala aquela tal lenda, segue o exemplo de Betânia e ama a quem quer que seja: homem, mulher ou animal. Ouve os conselhos de Florbela e ama só por amar. Abre a tua boca e grita desesperadamente a teus pais, vizinhos, amigos ou até mesmo ao teu trabalho: “Amo-te!”. Experimenta esse exercício ao menos uma vez ao dia e não te importes se te chamarem insano por conta disso. Talvez teus problemas não se dissipem; mas será – ao menos – mais doce enfrentá-los, se amares.

sexta-feira, 28 de março de 2008

segunda-feira, 24 de março de 2008

A primeira só

sss
Era linda, era filha, era única. Filha de rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar?
Sozinha no palácio chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de brinquedos. Queria uma amiga para gostar.
De noite o rei ouviu os soluços da filha. De que adianta a coroa se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com a tristeza. Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o espelho ao pé da cama da filha que dormia.
Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina linda e única olhava surpresa para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom-dia. A outra deu bom-dia sorrindo.
-Engraçado-pensou uma-, a outra é canhota.
E riram as duas.
Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais.
A brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.
O rei, encantado com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa cesta. Bichos, bonecas, casinhas, e uma bola de ouro. A bola no fundo da cesta. Porém tão brilhante, que foi o primeiro brinquedo que escolheram.
Rolaram com ela no tapete, lançaram na cama, atiraram para o alto. Mas quando a princesa resolveu jogá-la nas mãos da amiga, a bola estilhaçou o jogo e amizade.
Uma Moldura vazia, cacos de espelho no chão.


Marina Colassanti, Uma idéia toda azul,
ed. Nórdica.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Verdade ou ilusão?


Às vezes fico pensando

se é verdade ou ilusão,

quando vejo aparecer

lenços e pombas sem fim

nas mãos vazias de um mágico,

e, quando firmo a visão,

nada resta em frente a mim...

É da manga que ele tira,

é tudo um truque,mentira...

Ou não?


Às vezes fico na dúvida

se é sonho ou realidade

quando nas ordens de um mágico

caem moedas no ar,

surgem chamas à vontade,

e, quando torno a olhar,

não há nada em sua mão!

É só mentira, ilusão...

Ou verdade?

segunda-feira, 17 de março de 2008

E não é que existem mesmo Príncipes Encantados?




Muito obrigado pelo texto Tom!




Por Georgeton Correia

Cresci ouvindo histórias sobre castas princesas enclausuradas em seus castelos, à espera de um príncipe que viesse a lhes resgatar da entediante rotina de sua corte. Histórias infantis, como a da Cinderela, a pobre menina criada por sua madrasta malvada e suas duas meias-irmãs – igualmente cruéis – que, com a ajuda de sua fada-madrinha, fisgou um belo príncipe deixando pra trás – estrategicamente, ninguém me convence do contrário! – um pé do seu sapatinho de cristal. Ou histórias como a da Branca de Neve, a mais bela de seu reino, que, vítima da inveja de sua madrasta – já repararam que todas essas princesas tinham madrastas? –, precisou pedir acolhida na casa dos sete anões, comeu – pobrezinha! – uma maçã envenenada e somente acordou do feitiço após o beijo do seu não menos encantado príncipe. Isso para não mencionar a Bela Adormecida: nem mesmo os cuidados de seus zelosos pais conseguiram impedi-la de furar seu dedo na agulha de uma roca, o que a fez cair em sono profundo, à espera – adivinham? – do beijo redentor do seu príncipe – sim, esse também encantado!

Ah, os príncipes encantados! Na verdade eu nunca acreditei muito neles. Sempre me pareceu muito exagerado o fato de as princesas daquelas histórias passarem sua vida inteira à mercê do surgimento de seus príncipes. Podem até ser belas histórias, as que nos contavam nossos pais, mas eu definitivamente acreditava que elas deviam ser encerradas nos livros de bordas douradas e ponto final, não fora deles. O grande problema é que, na vida real, as pessoas tendem a imitar os contos de fadas e por isso idealizamos para nós um par perfeito, uma cópia fiel dos mocinhos das histórias que ouvíamos quando crianças: um príncipe de indefectíveis madeixas aloiradas, montado em um puro sangue branco, provavelmente oriundo de seu haras real. Ora bolas! Quais as chances de encontrar uma figura como essas andando pela calçada do outro lado da janela do nosso quarto? Seria muito mais fácil – e o leitor há de concordar comigo – ganhar sozinho, por sete vezes consecutivas, a Mega Sena acumulada. Por isso nunca acreditei nos príncipes encantados. Ou, pelo menos, não acreditava neles até ontem. Alguns fatos ocorridos ultimamente em minha pacata vida, entretanto, fizeram-me rever o conceito que tinha sobre a controversa figura do Príncipe Encantado.

Permita-me, caro leitor, compartilhar contigo de minhas recentes descobertas:

Os príncipes encantados não são loiros!
Eu sei que essa revelação pode parecer chocante à primeira vista, já que todos os príncipes que eu via retratados nos meus livros de infância ostentavam grandes cabeleiras cor de ouro. Mas essa é a mais pura realidade, creia-me: seu príncipe encantado terá cabelos pretos como azeviche! É claro que algumas variações podem ocorrer, a depender, obviamente, da família de que se origina o seu príncipe: cabelos castanhos, mais longos, mais curtos, mais crespos, mais lisos, até mesmo cabelos ausentes... Entretanto, quanto mais preto for o cabelo do seu príncipe, mais encantado – ou eu deveria dizer "encantador"? – ele será.

Os príncipes encantados não montam cavalos brancos!
Ora, faça-me o favor! Depois de décadas passadas desde a invenção do Sr. Ford, você ainda acredita que seu príncipe viria montado em um cavalo? Não, mesmo! Há grandes chances de que o seu príncipe encantado venha até você de ônibus, de trem ou mesmo de táxi. E daí? Se você tiver sorte, talvez encontre o seu príncipe saindo do velho Uno 1.0 que divide com o seu irmão. Mas não apeando de um cavalo. Muito menos branco!

Os príncipes encantados não têm rostos perfeitos!
Esqueça os belos dentes cor de neve, resplandecentes, e a pele de veludo rosada com os quais se costumam apresentar os príncipes nos contos. Mesmo havendo superado a puberdade há muito, talvez o seu príncipe ainda tenha marcas de espinhas no rosto. Tenha em mente que cada uma das marcas que trazemos estampadas em nossos corpos é um registro da experiência que adquirimos em nossa vida. Seu príncipe terá um sorriso ligeiramente amarelado e o brilho do seu sorriso será proveniente dos "brackets" do seu aparelho ortodôntico. Eu, particularmente, penso ser este um charme à parte.

Os príncipes encantados não usam mantos, nem cetros!
Desapontado? Lamento. Esqueça aquelas pesadas vestimentas medievais – capa e boina de lado –, e aquelas meias brancas coladas, enormes, que subiam até os joelhos. Seu príncipe chegará até você usando jeans e camisa três quartos. E você ainda precisará retirar um pequeno fiapo da linha que desprende do terceiro botão da camisa dele. Sugiro a ponta de um cigarro aceso pra essa tarefa: rápido, prático e eficiente, como pedem os tempos modernos.

Os príncipes encantados não têm recursos financeiros ilimitados!
Ouro? Pedras preciosas? Jóias da câmara real de tesouros? Qual é! Você ainda tem cinco anos ou o quê? Seu príncipe acordará todos os dias, às seis da manhã para encarar uma jornada de trabalho de oito horas, de segunda a sexta-feira, para ganhar um salário no final do mês. E ainda terá que encarar as aulas noturnas em sua faculdade de Administração de Empresas. Aos vinte e poucos anos, ele ainda não saberá que carreira seguir. E talvez não saiba, ainda, aos trinta. Uma dica: ofereça-se para dividir as contas do restaurante e do cinema com ele. E quando a grana estiver curta pra ambos, ainda resta o romantismo de assistir ao pôr-do-sol abraçadinhos. Quer espetáculo melhor?

O fato é que mesmo estando longe da perfeição dos Príncipes Encantados dos contos de fadas, o seu príncipe ainda te fará sorrir somente com a sua presença. Seu coração irá disparar como o de um adolescente, no momento do primeiro beijo. A sua face se encherá de rubor apenas com o toque dele. Os suspiros? Esses se tornarão uma constante no seu dia-a-dia – acredite em mim. E você irá se pegar, no meio de uma tarde entediante em seu trabalho, fitando o vazio com aquele ar sonhador e um sorriso no canto da boca, dádivas somente concedidas aos apaixonados. Mas acima de tudo, mesmo quando não estiver ao seu lado, o seu príncipe fará com que você sinta que, assim como aquelas princesas sobre quem comentei no início, vocês dois podem ser "felizes para sempre".

Agora, se você, caro leitor, puder dar-me licença, preciso atender a uma carruagem que acabou de estacionar à minha porta

quinta-feira, 13 de março de 2008

Jeitos de Falar

Adoro passar o dia com meu avô e minha avó. De vez em quando faço isso, e sempre me divirto de montão.
Vovô é alto, magro, tá sempre olhando pra cima. Gosta de olhar as nuvens. Já me explicou vinte vezes a diferença entre cirros, cúmulos e nimbos. Outro dia me disse:
- A presença no firmamento de densos nimbos em baixa altitude prenuncia precipitações pluviométricas iminentes.
Fiquei na mesma. Só entendi quando Vovó me explicou:
- Vai chover.
Vovó é muito ativa: anda pra lá e pra cá o tempo todo. É ela quem sabe onde estão guardadas todas as coisas na casa, desde alfinetes até enormes baús da bisavó. É gorducha e, perto de Vovô, parece baixinha.
Vovô sabe tudo. Conhece todas as palavras do dicionário, todos os países do mundo - com nome científico e tudo. Adoro conversar com ele, mas não pesco nem metade, só dá pra entender o que ele diz se vovó estiver junto.
Vovó não fala muito; em compensação, faz cada doce de dar água na boca. E tricota os agasalhos mais quentinhos do mundo.
Ontem passei o dia na casa deles, e saímos os três pra fazer compras. Entramos na farmácia e Vovô disse pro balconista:
- Por obséquio, necessitamos adquirir cápsulas de ácido acetilsalicílico para sanar cefalalgias.
O garoto atrás do balcão ficou o lhando pro Vovô como se ele tivesse falado grego. Aí Vovô traduziu:
-Precisamos de aspirina para dor de cabeça.
É por essas e outras que eu adoro Vovô e Vovó.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O poder do perdão

Em 1974, voltando da escola para casa no último dia antes das férias de Natal, eu pensava animadamente sobre o feriado vindouro, como só os meninos de dez anos conseguem sonhar. A algumas portas de distância da minha casa em Coral Grables, Flórida, um homem se aproximou de mim e perguntou se eu poderia ajudá-lo com a decoração de uma festa que ele estava dando para meu pai. Achando que era um amigo de meu pai, concordei em ir com ele.
O que eu não sabia era que este homem tinha ressentimentos contra a minha família. Trabalhara como enfermeiro para um parente idoso, mas fora despedido por causa da bebida.
Após eu ter concordado em acompanhá-lo, ele dirigiu seu trailer até uma área isolada ao norte de Miami, onde parou no acostamento da estrada e me golpeou várias vezes no peito com um furador de gelo. Então dirigiu para oeste, até Flórida Everglades, levou-me até o meio dos arbustos, deu um tiro em minha cabeça e me deixou lá para morrer.
Felizmente a bala havia passado por trás de meus olhos e saído pela minha têmpora esquerda sem causar nenhum dano cerebral. Quando recobrei a consciência, seis dias depois, não tinha noção de que tinha sido atingido por um tiro. Fiquei sentado no acostamento e fui encontrado por um homem que parou para me ajudar.
Duas semanas depois descrevi a pessoa que me atacara para o desenhista da polícia e meu tio reconheceu o retrato resultante como o homem que me atacara. Meu agressor foi preso, junto com outros suspeitos. Entretanto, o trauma e o estresse haviam cobrado seu preço e não pude identificá-lo. Infelizmente a polícia não conseguiu recolher nenhuma prova física que o ligasse ao crime. Portanto, ele nunca foi acusado.
O ataque me deixou cego do olho esquerdo, mas não causou nenhum outro dano e, com amor e o apoio da minha família e amigos, voltei para a escola e dei continuidade a minha vida.
Durante os três anos seguintes, vivi com uma extrema ansiedade. A maioria das noites eu acordava assustado, imaginando que havia escutado alguém entrando pela porta dos fundos e acabava dormindo no pé da cama de meus pais.
Então, quando eu estava com treze anos, tudo isso mudou. Uma noite, durante um estudo da Bíblia com o grupo jovem da igreja, percebi que a providência e o amor de Deus, tendo miraculosamente me mantido vivo, eram a base para a segurança em minha vida. Em Suas mãos eu podia viver sem medo ou rancor. E então eu o fiz. Terminei os estudos, recebendo o diploma de Divindade. Casei com minha maravilhosa esposa, Leslie. Temos duas filhinhas maravilhosas, Amanda e Melodee.
Em setembro de 1996, o major Charles Scherer, do Departamento de Polícia de Coral Gables, que trabalhara na investigação original do meu caso, telefonou-me para me contar que o agressor, hoje com setenta sete anos de idade, finalmente confessara. Cego por causa do glaucoma, com a saúde abalada, sem família ou amigos, ele estava em um asilo no norte de Miami Beach. Fui visitá-lo.
A primeira vez em que fui visitá-lo ele se desculpou pelo que havia feito a mim e eu lhe disse que o havia perdoado. Visitei-o muitas vezes depois disso, apresentando-o à minha esposa e filhas, oferecendo-lhe esperança e uma certa sensação de família nos dias anteriores à sua morte. Ele sempre ficava feliz quando eu aparecia. Acredito que nossa amizade tenha diminuído sua solidão e era um grande alívio para ele, após vinte e dois anos de arrependimento.
Sei que o mundo pode me ver como a vítima de uma horrível tragédia, mas eu me considero a "vítima" de muitos milagres. O fato de eu estar vivo e não ter nenhuma deficiência mental desafia as probabilidades. Tenho uma esposa amorosa e uma família linda. Recebi tantas dádivas quanto qualquer outra pessoa - e amplas oportunidades. Fui abençoado de várias maneiras.
E enquanto muitas pessoas não conseguem entender como pude perdoá-lo, do meu ponto de vista eu não poderia deixar de fazê-lo. Se eu tivesse escolhido odiá-lo todos esses anos, ou passar a vida procurando vingança, então eu não seria o homem que sou hoje - o homem que minha mulher e filhas amam.

Chris Carrier- Extraído do livro Histórias para aquecer o coração, da editora Sextante.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Pequeno Grande Planeta...


Imagino a Terra ao longe, lá no espaço.
O planeta dá sua eterna volta
em torno de si mesmo,
em torno do Sol.
Minha imaginação vê os mares azuis,
as nuvens brancas,
as manchas indistintas que devem ser
os continentes, florestas, cordilheiras,
Desertos secos e pólos gelados, rios tão
calmos e vulcões furiosos
A Terra tão longe, lá no espaço, gira:
pequeno planeta na imensidão do espaço
cocô de mosca perdido no universo-
e, mesmo assim, enorme e tão diverso!
Seco, molhado, frio e incandescente,
cada vez um planeta diferente.
A Terra,
grande, boa e velha Terra.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Porque hoje é sábado...

Eu sei que hoje é quarta-feira e que o título da crônica são versos do imortal Vinicius de Moraes.
E os poetas são aqueles que enxergam primeiro, são mais artistas que um cronista semanal, por exemplo.
Agora, com a idade entrando na carne e na dor da gente, vamos percebendo o significado de uns versos que ficaram na nossa memória de adolescente. Entendemos melhor, digamos assim.
O sábado, por exemplo. Nunca dei tanto valor para o sábado, como agora. Em primeiro lugar porque tem o domingo depois. Esse sim, como diz o Jornal da Tarde, é o dia do bode. Ou seja, no sábado você tem direito a tudo e ainda conta com o domingo para sarar, recuperar, tirar as culpas. Não fosse domingo o dia da família, talvez até desse para enfrentar. Mas domingo é um horror. Já começa com missa logo de manhã. Pode? Mesmo quando a gente viaja. Domingo é o dia da volta, das filas. E o pior, do domingo, é que é a véspera de terrível segunda-feira.
Segunda-feira, como todo mundo sabe, é o dia de começar tudo. Desde o trabalho e o regime, aquele desejo de parar de fumar, beber menos. Não pode haver dia pior porque, na verdade, a única coisa que todo mundo faz mesmo na segunda-feira, é trabalhar. Planos e projetos ficam sempre para o mês que vem. Principalmente a dieta e o cigarro. E quer coisa pior da segunda-feira que o colega (ou a colega) de trabalho do lado contar como foi o fim de semana dele? Em detalhes?
Mas voltemos ao sábado. No sábado tudo é permitido. Tudo. Até brochar, num sábado você pode. Mas brochar, por exemplo, numa quarta-feira é imperdoável, literalmente. Sábado, não. Tem outras horas, mais tarde, quem sabe, mais um uisquinho. No sábado as nossas mulheres entendem.
No sábado tem o churrasco em casa e a feijoada no restaurante. Em ambos os casos não tem hora nem para começar e nem para acabar. Não é como a feijoada de quarta-feira onde o cara se enche todo e volta, coitado, para a repartição, arrotando e flatulando.
No sábado você pode desejar a mulher do próximo, mesmo que ele esteja próximo. Pode acordar a hora que quiser. Pode deitar a hora que quiser. Pode encher a cara e esvaziar a cabeça.
No sábado, de noite, você pode jogar um poquerzinho com a turma que a sua mulher não vai reclamar. Mas experimente marcar um pôquer para a quinta-feira. Dá briga. Tudo pode, no sábado.
Não é muito mais gostoso ir ao futebol no sábado? Domingo é dia de ficar em casa vendo pela televisão, as reprises, aqueles gols todos.
Sábado é dia de cinema e teatro. Tem sábado que dá até para enfrentar uma pizza. Mas pizza noutro dia é cafona. Pizza na quinta, por exemplo. Não tem sentido. No sábado, não. É programa.
A sexta-feira pode ser considerado um péssimo dia. Último dia de trabalho, você cansado. Mas a sexta-feira tem uma vantagem. No outro dia é sábado. Na verdade, o verdadeiro sábado começa quando você sai do seu trabalho. Quando escurece na sexta-feira, já estamos no sábado. O sábado vai das seis da tarde da sexta, até a madrugada de domingo. Sim, o sábado é o único dia da semana que tem 36 horas. Corridas e lentas ao mesmo tempo.
Quer dia melhor para lavar o carro, visitar os filhos? Quer trânsito melhor que o de sãbado? O carro desliza pela cidade como se estivéssemos em outro planeta.
Sábado é o único dia da semana que dá para ver um filme na televisão, de tarde, sem ficar com culpa. Numa boa.
Sábado tem sol mais bonito, o dente de siso não dói, a úlcera some (volta sempre na segunda de tarde), o uísque desce mais macio, a gente demora para ficar de porre. A gente tem o dia inteiro para ler o jornal, fazer palavras cruzadas.
Eu acho que quando Deus criou esse nosso mundo, deve ter pensado: vou fazer um dia só para os homens. O sábado. As mulheres que me desculpem, mas sábado é um dia masculino, com o que (eu acho) o meu grande poetinha ia ter que concordar.
Tudo isso só porque hoje é sábado e eu estou escrevendo essa crônica para você.


Mário Prata
Crônica escrita para o Estado de São Paulo em 1998

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Aos Goleiros


Nas peladas de rua em São Paulo, quando havia peladas de rua e a bola podia ser feita com a meia furada da irmã da gente, ou então de borracha ou capotão, o perna-de-pau, o ruim de bola, acabava indo para o gol.

Em pelada de rua, gol não tinha traves. Podiam ser dois paralelepípedos, dois montinhos de pedra, um tijolo partido ao meio. O gol às vezes era balizado pelas camisas e blusas dos jogadores, marcando a largura ponderada do arco. Como não havia travessão, o gol terminava por ser uma área espacial teórica, definida por linhas imaginárias, como são o Equador e o Capricórnio.

O espaço ficcional era guardado pelo goleiro, também ele de certa forma produto da ficção do time. Na verdade, a conquista do gol nas peladas de rua obedecia a um consenso entre o goleiro e os demais jogadores. Quantas vezes acontecia de a bola ter entrado, ou merecer ter entrado, mas o testemunho do goleiro, que havia saltado o mais que podia e não conseguira agarrar a bola, determinava a decisão: "Foi alta!"

Avantagem da pelada de rua é que conssentia a realidade da imaginação. Mesmo quando se jogava cinco contra cinco ou oito contra sete, os números são apenas simbólicos. Na cabeça alvoroçada dos guris havia em campo dois times completos de onze. E ainda que invisíveis e impalpáveis, consideravam-se como existentes as traves e a rede. O nome dessa mágica me parece que é infância.

Contudo, nenhuma pelada, por mais desengonçada e mambembe, abria mão dos dois goleiros. Não importava fossem escolhidos por último, quase condenados à posição como restolho da colheita da zaga à ponta esquerda. Eram eles fundamentais para catar as bolas chinfrins ou impossiveis, distribuir o jogo, cuspir nas mãos quando o adversário batia falta e dar sua sentença final sobre a exata dimensão do gol. Na realidade os goleiro é que definiam a diferença entre pelada e bate-bola.


Lourenço Diaféria

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Universos- Texto 2


Os pensamentos confusos, que durante um bom tempo se haviam misturado a sonhos em sua mente, finalmente se concentraram em um só. Estou acordado.

Precisou de todas as forças de que dispunha para controlar o medo e não gritar. Repassou mentalmente o treinamento, os exercícios, as noções teóricas que agora testaria na prática.

Desenvolvendo equações mentais, conseguiu evitar a lembrança do desconforto que lhe causava a roupa, os aparelhos gelados pressionando seu corpo, tubos invadindo-lhe a pele para a introdução de alimentos e a retirada de resíduos.

Nada além de dor e frio, luzes incomodando-lhe os olhos, ardores e arrepios maltratando-lhe o corpo. Tentou ajustar-se ao assento da nave. Anatômico, asseguravam os técnicos. Mas desconfortável para quem ali permanecesse por muito tempo.

Finalmente tomou coragem e abriu os olhos. A cápsula continuava como mesmo aspecto de que se lembrava, antes de ser induzido ao sono. Os aparelhos indicavam exatamente o que deveriam indicar. Checou os números e mapas, aproveitando a concentração da atenção nos detalhes técnicos para amenizar o desconforto físico. Sim, estava acordado e em boas condições. Sobrevivera aos testes, ao lançamento, ao longo período em estado de hibernação. E localizava-se agora na região desconhecida.

Foi então que teve coragem de olhar pela primeira vez o visor. Invadiu-o a sensação estranha, inesperada. Aquela região não lhe era desconhecida...

Soltou as travas que retinham no assento. Deixou o corpo flutuar com a falta de gravidade como se tivesse feito aquilo a vida toda, e aproximou-se do visor agarrando os corrimões instalados para essa finalidade. Junto ao posto de oservação teve melhor visão.

Sim, racionalmente sabia que as estrelas que via através do visor da nave não eram as que poderia ver no céu de seu planeta. Eram outras, as que seus mapas e cálculos indicavam como posicionadas nos confins da galáxia. E mesmo assim, ele conhecia o lugar. Embora aquela missão fosse uma das primeiras e ele um dos poucos a explorar a região, sentia-se em casa. A vista diante de seus olhos era magnífica. À frente, o universo.

Conforto. O universo inteiro era um lugar morno e macio. Existir era flutuar ali desde sempre. Sem interrupções. Sem peso. Sem esforço. O alimento chegando em intervalos pausados, a força e o prazer de mover os membros vagarosamente, acompanhando a pulsação do universo... Dormir e acordar, como se os sonhos fossem apenas o outro lado dos pensamentos. Era bom existir.

Sorriu dentro da roupa que já não parecia desconfortável e preparou-se para enviar as primeiras mensagens à Terra.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Universos - Texto 1


A pulsação era suave, contínua, incessante. Não havia nada além dela. Tudo- o calor, o alimento, até as ondas confusas de pensamentos em sua mente - embalava-se ao ritmo daquela pulsação eterna, compassada, confortável.

Conforto. O universo inteiro era um lugar morno e macio. Existir era flutuar naquele líquido desde sempre, sentindo-se crescer aos poucos. Sem interrupções. Sem peso. Sem esforço. O alimento chegando em intervalos pausados, a força e o prazer de mover os membros vagarosamente, chutar as membranas em volta.Flexíveis, macias... Dormir e acordar tranquilamente, como se os sonhos fossem apenas o outro lado dos pensamentos. Tão parec idos! Era bom existir.

O movimento começara imperceptivelmente, pequena variação no pulsar costumeiro. Nada de mais, apenas um novo balanço a embalar seu sono. Porém com o passar dos minutos foi se intensificando, sobrepondo-se ao outro pulsar, sacolejando as membranas macias que de repente pareciam enrijecer.

Desconforto. Urgência. o universo de repente empurrando seu corpo como se quisesse expelir. E o movimento ficando mais forte, anulando a pulsação conhecida, causando dor, impedindo o prazer de flutuar. Pela primeira vez sentiu medo.

Subitamente todo o líquido pareceu escoar-se, e absurda sensação de frio envolveu-o. Um empurrão mais forte e o frio se tornou insuportável: o universo como que explodia em dolorosa luz, ofuscando-lhe os olhos, penetrando- lhe, das narinas até as profundezas do corpo.

Quis voltar ao calor e à maciez da existência de antes, mas seu universo não mais existia. E ao frio intenso, ao desconforto e à agressão respondeu tentando expulsar o ar gelado pela boca. Gritou.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O império da vaidade

Você sabe por que a televisão, a publicidade, o cinema e os jornais defendem os músculos torneados, as vitaminas milagrosas, as modelos longilíneas e as academias de ginástica? Porque tudo isso dá dinheiro. Sabe por que ninguém fala do afeto e do respeito entre duas pessoas comuns, mesmo meio gordas, um pouco feias, que fazem piquenique na praia? Porque isso não dá dinheiro para os negociantes, mas dá prazer para os participantes.
O prazer é físico, independentemente do físico que se tenha: namorar, tomar milk-shake, sentir o sol na pele, carregar o filho no colo, andar descalço, ficar em casa sem fazer nada. Os melhores prazeres são de graça- a conversa com o amigo, o cheiro de jasmim, a rua vazia de madrugada -, e a humanidade sempre gostou de conviver com eles. Comer uma feijoada com os amigos, tomar uma caipirinha no sábado também é uma grande pedida. Ter um momento de prazer é compensar muitos momentos de desprazer. Relaxar, descansar, despreocupar-se, desligar-se da competição, da áspera luta pela vida- isso é prazer.
Mas vivemos num mundo onde relaxar e desligar-se se tornou um problema. O prazer gratuito, espontâneo, está cada vez mais difícil. O que importa, o que vale, é o prazer que se compra e se exibe, o que não deixa de ser um aspecto de competição. Estamos submetidos a uma cultura atroz, que quer fazer-nos infelizes, ansiosos, neuróticos. As meninas precisam se modelos que desfilam em Paris, os homens não podem assumir sua idade.
Não vivemos a ditadura do corpo, mas seu contrário: um massacre da indústria e do comércio. Querem que sintamos culpa quando nossa silhueta fica um pouco mais gorda, não porque querem que sejamos mais saudáveis- mas porque, se não ficarmos angústiados, não faremos regimes, não compraremos mais produtos dietéticos, nem produtos de beleza, nem roupas e mais roupas. Precisam da nossa impotência, da nossa insegurança, da nossa angústia.
O único valor coerente que essa cultura apresenta é o narcisismo.
Paulo Moreira Leite

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Deus não vai te perguntar




Oi Pessoal!




Quero me desculpar por nao ter mais postado... eu estou viajando de ferias, e nao to tendo muito tempo para escrever...mas quando eu voltar estara tudo normalizado!




Vou deixar um texto que me mandaram e que eu achei bem interessante.








Deus não vai perguntar que tipo de carro você costumava dirigir, mas vai perguntar quantas pessoas que necessitavam de ajuda você transportou.




Deus não vai perguntar qual o tamanho da sua casa, mas vai perguntar quantas pessoas você abrigou nela.




Deus não vai fazer perguntas sobre as roupas do seu armário, mas vai perguntar quantas pessoas você ajudou a vestir.




Deus não vai perguntar o montante de seus bens materiais, mas vai perguntar em que medida eles ditaram sua vida.




Deus não vai perguntar qual foi o seu maior salário, mas vai perguntar se você comprometeu o seu caráter para obtê-lo.




Deus não vai perguntar quantas promoções você recebeu, mas vai perguntar de que forma você promoveu outros.




Deus não vai perguntar qual foi o título do cargo que você ocupava, mas vai perguntar se você desempenhou o seu trabalho com o melhor de suas habilidades.




Deus não vai perguntar quantos amigos você teve, mas vai perguntar para quantas pessoas você foi amigo.




Deus não vai perguntar o que você fez para proteger seus direitos, mas vai perguntar o que você fez para garantir os direitos dos outros.




Deus não vai perguntar em que bairro você morou, mas vai perguntar como você tratou seus vizinhos.




E eu me pergunto: que tipo de respostas terei para dar?




Você quer ser feliz por um instante? Vingue-se.




Você quer ser feliz para sempre? Perdoe!








Whit Criswell


sábado, 26 de janeiro de 2008

Para Sempre

Mais uma do Drummond...

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.


Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Uma história...

Uma história é capaz de iluminar nossa relação com os outros,
de fortalecer nossa compaixão, de transformar o olhar com que contemplamos nossos semelhantes,
confirmando a crença de que
"estamos todos juntos na tarefa de viver..."
Uma história leva-nos a descobrir uma verdade nova, a dar-nos uma nova perspectiva,
a ver o mundo de maneira renovada.
Ruth Stotter

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Quem é você?


-Alguém me perguntou.

E na hora de responder eu engasguei.

É claro que sei meu nome...

Mas será que dizer o nome basta?

Fiquei pensando.

Se disser meu nome, sobrenome e apelido,

a cidade, a rua, a casa em que eu moro,

as pessoa podem até achar que me conhecem.

Só que não vão saber das coisas que eu penso,

das comidas de que eu gosto,

dos sonhos que eu tenho,

dos segredos que eu não conto.

Não vão saber o principal...

Meu nome, meu apelido, meu endereço não dizem,

de verdade, quem sou eu.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O mundo, aqui



Esta mulher de saias largas e sorriso contido, que me encara na foto amarelada, é minha bisavó. À sua volta um jardim, um quintal, uma rua tão comprida que nem tem fim. O mundo antigamente era desse jeito: largo, misterioso, cheio de terrenos e quintais e várzeas e céus -como nas velhas fotografias desse álbum.

Conheci minha bisavó. Não a jovem morena que me sorri no retrato, mas a mulher de cabelos brancos e corpo frágil, que me contava histórias ao anoitecer. Parece que ainda ouço a sua voz...

"-Ah, era tudo muito longe. Qualquer viagenzinha demorava dias, semanas. Até ir ao centro da cidade demorava um tempão!"

"-Cinema? Quase nunca. O máximo que dava pra fazer era ir ao vizinho ouvir rádio. Tocava música, dava notícias. Lembro do tempo da guerra..."

"-Mandavam cobrir as janelas, apagar as luzes durante o blecaute. Diziam que podia ter bombardeio. Eu não tinha medo: a guerra acontecia lá nas europas, não ia chegar aqui. França, Alemanha...pra mim aqueles lugares não existiam de verdade, eram mais longe que o purgatório!"

É. O mundo da minha bisavó era imenso, interminável, inesgotável. A noticia de uma bomba atômica estourando no Japão só chegaria a ela muito tempo depois. Os longos espaços amorteciam as novidades e adiavam os espantos.

E hoje... eu fecho o álbum de fotografias amareladas e vejo à minha frente as imagens de um terremoto no Japão. A queda de um avião no Canadá. Fome na África e exércitos na Ásia. Uma competição esportiva na Austrália. Naves saindo do Sistema Solar... tudo aqui, e agora.

Parece brincadeira, mas eu conheço melhor o rosto do presidente americano do que o do padeiro ali na esquina! Estranhos tempos estes, em que o mundo cabe inteiro, em tempo real, naquela caixa iluminada parada no meio da minha sala! Em que uma teia eletrônica leva qualquer um a qualquer lugar.

Ainda como espanto de minha bisavó por dentro, piso porta afora e entro no mundo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Tropeções de Inteligência

Há a história dos dois ursos que caíram numa armadilha e foram levados para um circo. Um deles, com certeza mais inteligente que o outro, aprendeu logo a se equilibrar na bola e a andar no monociclo, o seu retrato começou a aparecer em cartazes e todo o mundo batia palmas: "Como é inteligente". O outro, burro, ficava amuado num canto, e por mais que o treinador fizesse promessas e ameaças, não dava sinais de entender. Chamaram o psicologo do circo e o diagnostico veio rápido: "É inútil insistir. O Q.I é muito baixo..."
Ficou abandonado num canto, sem retratos e sem aplausos, urso burro, sem serventia... O tempo passou. Veio a crise economica e o circo foi à falência. Concluíram que a coisa mais caridosa que se poderia fazer aos animais era devolvê-los às florestas de onde haviam sido tirados. E, assim, os dois ursos fizeram a longa viagem de volta.
Estranho que em meio à viagem o urso tido por burro parece ter acordado da letargia, como se ele estivesse reconhecendo lugares velhos, odores familiares, enquanto seu amigo de Q.I alto brincava tristemente com a bola, último presente. Finalmente, chegaram e foram soltos. O urso burro sorriu, com aquele sorriso que os ursos entendem, deu um urro de prazer e abraçou aquele mundo lindo de que nunca esquecera. O urso inteligente subiu na sua bola e começou o número que sabia tão bem. Era só o que sabia fazer. Foi então que ele entendeu, em meio às memórias de gritos de crianças, cheiro de pipoca, música de banda, saltos de trapezistas e peixes mortos servidos na boca, que há uma inteligência que é boa para circo. O problema é que ela não presta para viver.
Rubem Alves

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Presas no Elevador


O elevador parou com um baque. As luzes se apagaram e, embora não ficasse totalmente escuro, Ivana sentiu um frio na barriga que significava pavor. Olhou para a senhora a seu lado, também surpresa pela parada, e tentou iniciar uma conversa:

-Parece que acabou a força!

A mulher num tom preocupado, disse:

-Ich spreche kein Portugiesisch...

Ivana lembrou-se de que naquele edifício não havia apenas a firma em que seu pai trabalhava, mas também alguns consulados de paises estrangeiros. E, naquela emergência, ela esbarra justamenteem uma mulher que não falava português! Como poderia comunicar-se?

E como sairiam daquele elevador parado? Tentou apertar o botão de "emergência" no painel, mas nada mudou. O elevador continuava escuro e parado, provavelmente entre cois andares. A garota olhou para sua companheira e fez com os braços o gesto universal de "o que faremos?". A mulher examinava a porta fechada.

-Komm!- disse ela, como se Ivana pudesse entendê-la-Ich glaube, es gibt einen Ausgang hier.

E pôs-se a puxar a porta para o lado, por uma pequena fresta. Ivana não precisou de dicionário para saber que a senhora pedia sua ajuda. Colocou as mãos no vão, que agora se tornava maior, e ajudou a outra a puxar a porta. Em poucos minutos haviam aberto uma passagem, e podiam ver uma abertura para o andar superior. Ivana calculou a altura pra pular.

-Ich helfe Ihnen. - disse a senhora, fazendo um degrau com as mãos e ajudando Ivana a alcançar a abertura.

Uma vez lá fora, a garota estendeu os braços e içou a mulher, que, com inesperada agilidade, esgueirou-se para fora do elevador. Paradas no corredor escuro, vendo o cubículo do qual havia escapado, elas se abraçaram, expressando-se na linguagem universal das interjeições:

-Uf!...

domingo, 6 de janeiro de 2008

A garotinha que ousou desejar


Quando Amy Hagadorn dobrou a esquina no final do corredor de sua sala de aula, colidiu com um garoto alto da quinta série correndo na direção oposta.

-Olhe por onde anda, coisinha -gritou o garoto enquanto se desviava da menina da terceira série. Então, com um sorriso afetado, o garoto segurou sua perna direita e imitou a maneira que Amy mancava quando estava andando. Amy fechou os olhos por um instante. "Ignore-o", disse para si mesma enquanto se dirigia para a sala de aula. Mas, no final do dia, Amy ainda estava pensando sobre a zombaria do garoto. E ele não era o único. Desde que Amy entrara para o terceiro ano, alguém zombava dela todo santo dia, a respeito de sua forma de falar ou de seu andar manco. Ás vezes, mesmo em uma sala cheia de outros alunos, as zombarias a faziam sentir-se sozinha.

À mesa de jantar naquela noite, Amy ficou calada. Sabendo que as coisas não iam bem na escola, Patti Hagadorn ficou feliz por ter boas notícias para partilhar com sua filha.

-Há um concurso de desejos de Natal na estação de rádio local - anunciou. -Escreva uma carta para Papai Noel e você pode ganhar um prêmio. Acho que alguém de cabelos louros e cacheados nesta mesa deveria entrar.

Amy riu e um papel e uma caneta surgiram.

-Querido Papai Noel - ela começou.

Enquanto Amy caprichava na caligrafia, o resto da familia tentava descobrir o que ela poderia pedir para Papai Noel. Tanto a irmã de Amy, Jamie, quanto sua mãe pensaram que uma Barbie de um metro de altura estaria no topo da lista de desejos de Amy. O pai de Amy pensou em um livro com ilustrações. Mas Amy não revelou seu desejo secreto de Natal.

Na estação de rádio WTL, em Fort Wayne, Indiana, as carta para o Concurso de Desejo de Natal jorravam. Os funcionários se divertiam com todos os diferentes presentes que os meninos e meninas de toda a cidade queriam para o Natal. Quando a carta de Amy chegou a estação de rádio, o diretos Lee Tobin a leu com atenção.

"Querido Papai Noel.

Meu nome é Amy. Tenho nove anos de idade. Tenho um problema na escola. Será que você pode me ajudar Papai Noel? Os garotos riem de mim por causa da maneira que eu ando, corro e falo. Tenho paralisia cerebral. Só queria um dia em que ninguém risse ou zombasse de mim.

Com amor, Amy."

O coração de Lee ficou apertado quando ele leu a carta. Ele sabia que paralisia cerebral era uma desordem muscular que podia deixar os colegas de Amy confusos. Ele pensou que seria bom para as pessoas de Fort Wayne ouvirem a respeito da menininha especial e seu pedido incomum. O Sr. Tolbin ligou para o jornal local.

No dia seguinte, uma foto de Amy e sua carta para Papai Noel estavam na primeira página do The News Sentinel. A história se espalhou rapidamente. Por todo o país, jornais, rádio e televisão relatavam a história da garotinha em Fort Wayne, Indiana, que pedira um presente de Natal tão simples e, ainda assim, notável- apenas um dia sem zombarias.

De repente, o carteiro passou a frequentar a casa do Hagadorns. Envelopes de todos os tamanhos endereçados a Amy chegavam diariamente, enviados por crianças e adultos do país inteiro, recheados de desejos de boas festas e palavras de encorajamento. Durante a época atribulada do Natal, mais de duas mil pessoas do mundo todo enviaram a Amy cartas de amizade e apoio. Alguns dos remetentes tinham deficiências, mas cada um enviava uma mensagem especial para Amy. Através dos cartões e cartas vindas de estranhos, Amy teve um vislumbre de um mundo cheio de pessoas que realmente se importavam com as outras. Ela percebeu que nenhuma forma ou quantidade de zombarias poderia fazê-la se sentir solitária novamente.

Muitas pessoas agradeceram a Amy por ser corajosa o suficiente para se abrir. Outras a encorajavam a ignorar as provocações e a andar de cabeça erguida. Lynn, uma menina da sexta série, do Texas, enviou esta mensagem:

"Gostaria de ser sua amiga e se, você quiser me visitar, poderiamos nos divertir. Ninguém irá zombar de nós porque, se o fizerem, não iremos nem ouvi-los"

Amy conseguiu o seu desejo de um dia especial sem zombarias na Escola Primária South Wayne. Ademais, todos na escola receberam um bônus extra. Professores e alunos discutiram sobre o que as zombarias podem fazer os outros se sentirem. Naquele ano, o prefeito de Fort Wayne proclamou oficialmente o dia 21 de dezembro como o Dia de Amy Jo Hagadorn em toda a cidade. O prefeito explicou que, ao ousar fazer um pedido tão simples como aquele, Amy ensinou uma lição universal.

-Todos- disse o prefeito - querem e merecem ser tratados com respeito, dignidade e carinho.

Alan D. Schultz

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O pequeno manual do Grande Manuel


Anunciava-se como "O Grande Manuel". Era português, alto, parecido com o John Carradine. Vinha pelo meio da tarde, trancava-se no salão de festas com suas malas. O forte dele era um número de bandeiras, bandeiras de todos os clubes e nações, bandeiras de entidades e coisas inexistentes que iam saindo de sua formidável piteira.

Como, por que e onde o Grande Manuel começou a fazer mágicas são coisas da vida, de maneira geral, e dos mãgicos em especial. Veio de Portugal para plantar batatas não sei onde. À cultura das batatas preferiu a cultura das ilusões: plantava um relógio no vaso, do vaso nascia um ovo, do ovo nascia a pomba. Plantar batatas talvez fosse menos trabalhoso mas as mágicas davam-lhe glória. Não era um Manuel qualquer. Era o Grande Manuel.

Mas até os grandes Manuéis vivem de coisas pequenas. A dele chamava-se "O Pequeno Manual dos Mágicos". Uma tarde, ele esqueceu o manual numa cadeira, nós pegamos o livrinho, descobrimos os truques todos. À noite, quando o Grande Manuel dizia: -"Olhem aqui, este guarda-chuva!", nós berrávamos: -"Não é guarda-chuva, é uma espingarda!"

Nunca mais o Grande Manuel foi contratado para deslumbrar nossos dias de festa. Deveria andar por aí, vendendo suas mágicas pelos cafundós do mundo. Ontem, ao abrir a porta lá de casa, vi o homem. O mesmo jeito de John Carradine, mais velho, o mesmo sotaque. Só não era o Grande Manuel. Era o Manuel dos Santos, técnico da loja que me vendeu um aspirador de pó. Não me reconheceu, eu era um menino no meio de duzentos meninos.

Examinou o aspirador, abriu a maleta das ferramentas. Vi um livro velho, amarelado, não, não era o pequeno manual e sim a genda dos clientes que precisava visitar. Mesmo assim, temi que ele repetisse o Grande Manuel e transformasse meu aspirador em liqudificador. Temi em vão. Numa época em que somos todos um pouco mágicos, ele pendurou suas chuteiras. Não me cobrou nada, a peça estava na garantia. E nunca entenderá por que lhe dei tão generosa gorgeta pela troca de um parafuso. A ele, que trocava flores em pássaros, perseguindo a gorgeta do aplauso e da glória que brotava de seus dedos encantados.


Carlos Heitor Cony